PARA BAIXO TODO SANTO EMPURRA

         A motocicleta ficou perfeita, brilhava ao sol. Tomás admirou a sua obra de limpeza, certo de que, assim, teria uma chance maior de reconquistar a Meire. Sua mãe passava pela oficina a caminho da escada que dava ao andar superior e aproveitou para pedir-lhe que fosse ao mercado comprar um pouco de carne para o almoço.
         Saiu a pé, apesar do enorme morro que dominava a pequena cidade de Morro Agudo, o mercado era embaixo, próximo de sua casa. Por onde andava, cumprimentava todos os conhecidos e ficava atento, querendo avistar a sua amada e musa inspiradora. Sabia que a encontraria à noite no casamento e queria estar bem bonito para a ocasião.
         Sendo o mecânico de motos da cidade, sempre encontrava alguém que lhe falava de sua moto e lhe pedia para consertá-la. Um ou outro defeito sempre aparecia nas motocicletas dos outros, e desta forma, Tomás ia levando a vida na pacata cidade. Sua oficina era junto com a borracharia do pai. Tomás era um sujeito grandalhão, forte e um pouco bronco, vez ou outra arrumava uma briga e ia conversar com o delegado. Uma vez passou uma noite inteira na cadeia, e, a partir daí, nunca mais arrumou briga.
         De tarde, passeou com sua moto pela cidade, ou melhor, subiu e desceu o morro, porque  a cidade era o morro e o morro era a cidade. Passou pela casa da Meire uma vez, depois duas e depois três, avistando-a no jardim. Ela ouviu o ronco da moto do Tomás e pensou: “De novo, este cara não me dá sossego!” Ele parou e a chamou, educadamente, ela foi até ele, conversou dois minutos e disse que estava apressada para se arrumar para o casamento da prima e o dispensou. Só de falar com ela, ele sentiu-se nas nuvens.
         Às 19 horas na igreja de Santo Antônio, muita gente já se aglomerava aguardando o tão esperado casamento da Ana Márcia. Entre os convidados, estava  Bento, que acabara de chegar de São José dos Campos, e via que Ana Márcia iria casar-se e não seria com ele. Ficara em dúvida, deveria ir? No início da faculdade, os dois foram namorados por alguns meses e ficou uma amizade cheia de altos e baixos durante o curso superior, terminado havia três anos. Poderia ser com ele que ela estaria casando-se hoje, mas era com este tal de Paulo. Por outro lado, eram amigos e ele não perderia esta ótima oportunidade de reencontrar os colegas da faculdade, os integrantes daquela turma grande que vivia junta nos barzinhos bebendo cervejas noites adentro.
Naquele sábado, ele chegou à cidade de Morro Agudo por volta de dezoito horas e descobriu o porquê do nome. A cidade se localizava em um morro muito alto, a cidade era o morro. Pequena e simpática, cheia de casas em estilo colonial português. Ele foi passando com o carro por aquelas ruas estreitas de paralelepípedos, sempre subindo devagar. Parou em uma praça, em desnível também e perguntou para um rapaz se a igreja à frente era a de Santo Antônio e o moço lhe confirmou. Procurou um lugar para estacionar por ali, mas, vendo que não havia vagas, ele seguiu pela rua lateral da igreja e subiu morro acima, mais uns cento e cinqüenta metros até encontrar um local para estacionar ao lado de uma outra igreja. Estranhou que uma cidade tão pequena tivesse duas igrejas tão próximas.
Bento saiu do carro e deu uma volta pela praça da igreja, que parecia ser a mais antiga, e percebeu a sua imponência. Por que o casamento não se realizaria ali foi uma dúvida que teve, afinal, esta pareceu-lhe mais bela que a outra, morro abaixo. Voltou ao carro, pegou o paletó, vestiu-o, compondo o seu terno e trancou o veículo. Foi aí que percebeu o pneu esquerdo traseiro um pouco murcho e pensou que seria melhor trocá-lo, mas não naquele momento, porque iria sujar as mãos. Após a cerimônia e antes de ir para a festa seria o melhor momento.
Desceu caminhando os cento e cinqüenta metros de rua até a igreja de Santo Antônio, de lá, olhou para cima e pensou que seria muito cansativo subir tudo aquilo de novo. Chegando, encontrou João, Ademar e Giovani; juntou-se a eles e conversaram muito até a hora de começar a cerimônia, quando tomaram assento dentro da igreja em um banco atrás de um sujeito grandalhão. A visão de Bento era dificultada porque o cara era um tremendo dum armário. Indispôs-se com aquela situação e ficou incomodado com um cara daquele tamanho atrapalhando tanta gente. Apesar do grandalhão, Bento viu que uma das madrinhas era a mulher mais bela que já vira na vida, usando um vestido azul, com decotes que nada revelavam e muito insinuavam, longos cabelos castanhos ondulados, um rosto de deusa. Bento achou curioso ela olhar muitas vezes para o lado em que ele e os amigos estavam sentados.
Tomás aguardava lá dentro também e ficou pensando que poderia estar no altar ao lado da sua doce Meire, admirada daquela distância, de onde, em todo momento, ele lhe lançava o olhar.  Tomás ficaria bastante feliz, apenas se estivesse como padrinho no lugar daquele priminho chato dela, mas sonhava mesmo em estar como seu noivo na hora do casamento.
Meire, lá no altar como madrinha da noiva, podia ver todos na igreja, sem querer, seu olhar se desviava para o local em que o Tomás estava e ela ardia de ódio ao vê-lo com aquela cara de peixe morto babando por ela. Notou que atrás do Tomás havia uns rapazes que não eram de Morro Agudo.
Quando a noiva entrou houve uma comoção geral, ela, que já era linda, estava mais linda ainda, como se isso pudesse acontecer. O coração de Bento disparou pensando na oportunidade perdida com aquela bela mulher. A cerimônia foi curta, sem missa e com muitos cumprimentos na porta da igreja.
No fim do casório, veio o convite dos amigos de Bento.
_ Vamos para a festa?
_ Vamos, só vou buscar o meu carro!
_ Onde ele está?
_ Lá em cima, perto da outra igreja.
_ Vem com a gente, depois a gente te deixa lá.
_ Tudo bem. Não estava a fim de subir este morro todo mesmo! Depois, teria que trocar o pneu murcho. – ele já contara a história para os amigos.
Convidados e mais convidados entrando no salão. Tomás ocupara uma mesa com seu irmão e seus pais de onde podia ver as mesas reservadas para os parentes, certo de que a sua musa lá estaria.
Realmente, um pouco depois, Meire, prima da noiva, chegou com os pais, os irmãos e outros primos, ocupando umas das mesas reservadas. De seu lugar ficou observando a alegria dos convidados e não se animava muito com aquela festa de casamento. Apesar do parentesco com Ana Márcia, as duas se distanciaram depois que esta começou a faculdade e ela foi obrigada pelo pai a ficar.
Para os quatro amigos da cidade grande, a festa estava perfeita, garçons servindo bem, muita bebida, todo mundo alegre.
Para Meire, os mesmos homens solteiros e bobos de sempre, daquela cidadezinha do interior, que a cansara desde a adolescência.
Ela se levantou para ir ao banheiro, convidou Celeste, uma das primas que a acompanhava e, no caminho, viu o grupo de rapazes da turma de faculdade da Ana Márcia. Interessou-se por aquele mais bonitinho, de cabelinho ridículo, nem magro nem gordo, que bebia em pé, comia feito um esfomeado e parecia ser um pouco mais legal.
_ O que você acha daquele lá?
_ Qual, Meire?
_ Aquele de cabelinho meio para o lado, que está em pé, sentou agora.
_ É bonitinho.
_ Vamos passar lá perto depois que a gente for ao banheiro.
Quando elas passaram perto, Bento silenciou ao ver aquela bela moça de olhos azuis, parece que ela sorriu ou foi impressão dele? Giovani não perdeu a oportunidade, tinha uma pastilha efervescente no bolso e a jogou no copo de cerveja do amigo, a cerveja espumou e começou a escorrer pela mão de Bento.
_ Que é isso! 
Ele pôs o copo em cima da mesa e agitou as mãos para limpar a cerveja.
_ Seu filho da mãe!
Os outros três racharam de rir.
_ Sacanagem isso, hein! Você vai ver Giovani, vai ter troco!
_ Cara, você está babando aí, isso aí é a sua saliva!
_ Também, você viu que menina linda! Vou chegar nela! Depois que eu me limpar.
_ Vai. Vai logo!
Bento foi lavar as mãos, aproveitou a ida ao banheiro e decidiu urinar, o banheiro masculino estava bastante imundo e fétido, fazer o quê, a bexiga não espera muito quando está cheia de cerveja. Urinou no vaso sanitário e saiu sem dar descarga porque tinha nojo até de apertar o botão. Aquele cara grandalhão que estava na frente dele na igreja e esperava que ele terminasse de urinar olhou feio quando o Bento passou ao seu lado, e ao chegar ao local do vaso, ainda gritou:
_ Caraca! O cara mija e não dá descarga!
Bento lavou as mãos rapidamente e saiu o quanto antes.
Depois procurou a menina de olhos azuis e a encontrou sentada em uma mesa, passou perto, olhou para ela, sorriu, fez um primeiro contato, ela sorriu de volta e ele pensou que tudo ia bem. Meire foi para a pista de dança.
Bento, que não era muito bom de dança, mas enganava bem foi lá e fingiu dançar até chegar bem perto.
_ Oi. – ele disse para Meire.
_ Oi!
Começaram ali um papo furado apenas para travar um primeiro contato. Ele perguntou se ela era amiga da noiva, se morava lá na cidade e tal. Ela perguntou de onde ele veio. E a conversa foi se desenrolando.
Lá pelas tantas, começou a tocar um bolero e Bento, conhecendo dois ou três passos do ritmo, aproveitou a oportunidade para pegá-la pela mão e iniciar uma dança a dois.
Orivaldo deu um toque no Tomás.
_ Olha o cara dando em cima da Meire! Você vai deixar?
Tomás, ex-namorado de Meire, até hoje achava que ela deveria ser só dele, pois ainda era apaixonado por ela, vendo a cena, o sangue ferveu.
_ De jeito nenhum!
 De soslaio, Bento viu um vulto enorme se aproximando, percebeu que era o cara grandalhão do banheiro, o mesmo que estava à sua frente na igreja. Pensou que ia ter problemas e se afastou um pouco da Meire.
_ Acho que teremos que parar. 
Tomás chegou intimando:
_ Ei, você!  Está agarrando a Meire! Pode soltar!
Meire se virou e viu o ex-namorado.
_ Tomás!
Ele a afastou com a mão esquerda e armou o soco com a direita para atingir o Bento; este, mais que depressa e antes do soco, virou-se e tirou o rosto para o lado, a mão do grandalhão passou raspando-lhe a orelha e acertou um coitado nas costas que não tinha nada a ver com o assunto.
Abriu-se um círculo no meio da pista de dança.
_ Agora você vai aprender a não dar em cima da minha namorada!
_ Ex - namorada! Ex-namorada! – protestou Meire entrando na frente do Tomás e lhe dando uns socos que só lhe faziam cócegas. Para ele, era um carinho e tanto.
Tomás não queria machucar a Meire e também não queria que outro cara a conquistasse, tentou ainda argumentar com ela, mas argumentos não era sua especialidade:
_ Meire, eu te amo! Não quero te perder! Não posso deixar um cara qualquer chegar e já ir dando em cima de você!
_ Sai da minha frente, Tomás, eu não quero nada com você! Seu, seu... – ela gaguejou, pois procurava uma palavra que o ofendesse de verdade para ver se ele saía da vida dela -... seu trocador de peças! Não quero nada com um brutamonte que só fica trocando peças de moto o dia inteiro!
Ela carregou as palavras! Tomás sentiu um misto de ofensa e humilhação, o sangue ferveu e ele a empurrou para o lado e se dirigia ao Bento, mas, antes que pudesse fazer qualquer coisa, um homem do tamanho dele, mais velho, mais gordo e com um grande bigodão grisalho, pôs a mão no seu ombro e disse-lhe:
_ Vai acontecer o quê, aqui, Tomás?
Ao ouvir a voz, Tomás virou-se como um santo.
_ Nada, doutor, está tudo bem aqui.
_ Acho melhor continuar tudo bem e você vai ficar na sua e não arrumar confusão por aqui nesta noite!
_ Claro, doutor.
Tomás retirou-se olhando feio para o Bento, socando a mão direita na palma da mão esquerda e lhe fazendo um sinal com o indicador como a dizer-lhe: “lá fora”. Bento engoliu em seco, Meire não quis saber, ao recomeçar a música, puxou o braço dele e voltaram a dançar, mas, naquele momento, ele já estava com medo de encostar-se à menina. Dançaram ligeiramente separados por uma barreira imaginária.
O resto da festa foi tranqüilo, a noiva jogou o buquê, cortaram o bolo, distribuíram presentinhos e docinhos, Meire e Bento conversaram bastante até que ela precisou ir embora com o pai. Momento em que Bento colou nos amigos e não afastou-se deles, até a hora em que decidiram ir embora, eram quatro da manhã, os três amigos, preocupados com a confusão que o outro arrumara, acompanharam-no e o deixaram em frente ao carro, e vendo o pneu murcho, falaram-lhe.
_ Você não quer dormir lá no hotel também? Deve ter alguma vaga, além do que é mais seguro do que ir dirigindo cansado por esta estrada.
_ Amanhã de manhã a gente ajuda você a trocar este pneu e vamos embora juntos.
Convite aceito imediatamente, pois ele não tinha a menor vontade de trocar o pneu àquela hora da manhã.
_ Tudo bem, vamos lá.
Chegaram ao Hotel Central, o único da cidade, acordaram o porteiro que roncava na cadeira, este, com cara de sono ainda foi interpelado.
_ Tem uma vaga para o nosso amigo aqui?
_ Tem não, tá lotado.
_ E não tem nem um colchão reserva sobrando aí para ele dormir no nosso quarto?
_ Tem não.
_ E aí, Bento?
_ Do jeito que estou com sono, durmo até no chão! Posso dormir no chão do quarto deles?
_ Poder, não pode, mas se vocês não falarem nada pro meu patrão e me derem aí uma meia diária...
_ Então vai ficar assim.
E assim fizeram, já eram quase cinco da manhã quando eles finalmente se ajeitaram no quarto e dormiram. Bento tentou dormir num canto, embaixo da janela, por onde entrava um ventinho gelado, mas o ronco do Giovani incomodava a todos, mesmo assim, conseguiu desmaiar por uma horinha apenas, mas não tinha jeito, não conseguindo ficar ali, decidiu sair e ir dormir no carro. A alvorada surgia e ele considerou que não haveria perigo do grandalhão aparecer, imaginando que o mesmo deveria estar dormindo bêbado em casa.
Bento cochilava no carro há pouco tempo. O sino da igreja começou a tocar para a primeira missa do domingo. O sol forte bateu no seu rosto e atrapalhou o sono. As pessoas da pequena cidade de Morro Agudo passavam pela calçada e o viam desarrumado e dormindo dentro do carro. Sentiu-se incomodado com aquilo e decidiu se ajeitar, arrumou o cabelo, olhando no espelho retrovisor, viu as olheiras que a noite mal dormida, após a festa de casamento, lhe fizera. Arrumou-se o suficiente para sair mais ou menos apresentável, saiu do carro e o olhar bateu no pneu vazio, lembrou-se que ainda precisava trocá-lo.
Olhou em volta e viu uma padaria próxima para onde se dirigiu e pediu um pingado e um pão com manteiga. O café fraco e sem gosto parecia feito ontem e o pão estava quentinho e com uma deliciosa manteiga derretida, dando-lhe um pouco de ânimo para enfrentar a ingrata tarefa que lhe estava reservada.
Chegou ao carro, abriu o porta-malas, pegou o macaco, a chave de rodas e o estepe, colocando-o deitado ao lado do carro. Soltou os parafusos da roda com dificuldade, ajeitou o macaco embaixo do carro e começou a levantar o veículo, antes da roda  ficar fora do chão, soltou todas as porcas e as colocou dentro do veículo por precaução, pois não queria ver aquelas porcas descendo morro abaixo. Enfim tirou a roda com o pneu furado, pegou o estepe e o colocou. Abaixou um pouco, colocou as porcas e terminou de abaixar o carro.  E descobriu que o estepe também estava murcho e não daria para ele sair dali daquele jeito, precisaria encher o pneu reserva primeiro.
Virou para um senhor careca que passava.
_ Por favor, o senhor sabe onde tem uma borracharia ou um posto de gasolina por aqui, na cidade?
Muito solícito, o homem lhe indicou:
_ Olha, o único borracheiro da cidade é o Tadeu do Pneu, é nesta rua aqui mesmo, só que fica lá embaixo, na entrada da cidade (o homem apontou com a mão). Do lado daquela ponte, você está vendo?
_ A ponte lá embaixo? Estou vendo.
_ É. Lá embaixo.
_ E o posto de gasolina?
_ É do lado.
_ Ah! Tá. Obrigado.
_ De nada, disponha!
Bento olhou lá para baixo até o fim da rua e desanimou-se, o problema não era um quilômetro de descida, mas o quilômetro de subida, o sol estava forte e queimando muito, logo cedo. Tentou procurar um ponto de táxi por ali perto e não viu nenhum. Não havia outra maneira, tinha que ser assim. Ele tirou o estepe do carro e recolocou o pneu furado, porque pensou que o estepe poderia estar apenas murcho e não furado. Então foi rodando o pneu rua abaixo com cuidado para não perder o controle. Estava difícil fazer isso, o cansaço dos poucos minutos de sono atrapalhava, e rodar um pneu ladeira abaixo evitando que a lei da gravidade o faça ir mais rápido é tão ruim quanto carregar uma mala sem alça. De qualquer maneira, ele foi rodando... rodando... Até o pneu escapar da sua mão e começar a rolar ladeira abaixo. Bento saiu correndo atrás dele, tentou segurá-lo, tropeçou numa pedra e caiu ralando o cotovelo, o pneu foi rolando a ladeira, uma velhinha atravessava a rua e pláft, o pneu atingiu-a em cheio, derrubando-a no chão, quase matando a coitada pelo susto e pela pancada. Ele levantou-se rápido e correu para ajudar a velhinha, pedindo-lhe mil desculpas, percebendo que a velhinha estava aparentemente bem, voltou a correr atrás do pneu, este bateu na porta de um carro estacionado, amassando-a e arranhando-a, seguindo a sua desenfreada descida, quase atingiu um carrinho de bebê e passou rente a um bêbado dormindo na beira da calçada.
O pneu ia desembestado e Bento corria atrás do bólido gritando para toda a gente:
_ Segura o pneu, segura o pneu!
Ele gritava, mas as pessoas na rua, tomadas de surpresa, não reagiam. Um menino viu o desespero de Bento e tentou parar o pneu com um pedaço de pau que trazia na mão, mas isto apenas desviou-o um pouco da rota e lá foi o pneu descendo com o seu dono correndo atrás.
A descida acabou e chegando à parte baixa da cidade, o pneu foi desacelerando, agora quem agia era a força do atrito, ele foi parando, parando, mas havia a ponte para passar e um ribeirão, Bento estava chegando perto do pneu, faltavam apenas cinco metros e ele estava parando e não deu tempo! O pneu caiu no ribeirão.
_ Não!
Foi o grito de desespero que ele pôde dar, foi à beira do ribeirão e viu o seu pneu jogado lá embaixo, e a dificuldade maior agora era chegar até lá.
Ele olhou para os lados e percebeu um lugar um pouco mais baixo no barranco, uma espécie de escada que descia até o leito e dali, pela beirada, podia-se chegar até o pneu. Ele foi por ali, desceu com cuidado e caminhou, equilibrando-se e agarrando o mato da beira para não pisar na água barrenta, enfim, chegou ao pneu, segurou-o com a mão esquerda, enquanto a direita se agarrava no mato para ajudar no equilíbrio. Puxou-o, o pneu saiu da água, mas Bento perdeu um pouco do equilíbrio, agarrou-se mais forte no mato do barranco que saiu na sua mão com raiz e tudo.  Desequilibrando-se, ia cair em cheio na água, jogou então a perna tentando atingir um banco de areia com o pé, conseguiu mas o pé esquerdo afundou na areia, o pneu bateu na água, espirrando o líquido com força e molhando o rosto e a roupa do coitado, que afundou o pé no barro até acima da canela. Ficou numa situação extremamente delicada e vexatória. Imagine o homem com o pé esquerdo na lama, as mãos apoiadas no pneu, a cara cheia de água suja, o pé direito apoiado no barranco do rio, nada poderia ser pior, não faltava mais nada para acontecer de ruim, quer dizer, faltava: uma pequena cobra veio nadando rio abaixo e entrou na calça de Bento pela perna que estava na lama.
Ele levou um susto tremendo com o bicho frio se contorcendo dentro da barra da calça e se esfregando na sua perna, deu um salto, perdeu o equilíbrio de novo, enfiou a mão esquerda no barro, afundou-a até o cotovelo e enfiou a mão direita na barra da calça, agarrou o réptil gelado pela cauda e jogou longe, berrando:
_ Sai pra lá, bicho feio!
Lá em cima, na calçada, por acaso, estava Meire, o docinho de olhos azuis, que por ali passava a caminho da padaria, gargalhando da desventura do coitado , mas, Bento nem a percebeu.
Aí já havia enfiado o pé direito no rio também, os sapatos e as meias ficaram encharcados, as barras da calça molhadas até quase o joelho, as mangas da camisa molhadas e sujas até os cotovelos. Estava nervoso, pegou o pneu e o atirou para o alto, tentando atingir a rua logo acima, o pneu bateu no barranco e escorregou até o rio novamente. Depois de duas tentativas frustradas o pneu parou lá em cima.
Foi até o posto, levando aquele pneu para confirmar se ele estava furado mesmo. Chegou ao posto, viu o frentista:
_ Ei, onde é o compressor de ar para encher pneu?
_ É ali.
O frentista apontou o local e, vendo o rapaz coberto de barro, imundo, disse-lhe:
_ Se quiser usar a torneira para se lavar tem uma no banheiro, ali.
_ Boa idéia. Vou mesmo.
O banheiro era apertado com uma pequena pia e uma toalha limpa. Pelo menos, não era tão fedido e sujo quanto aquele do baile, ele fechou a porta, tirou os sapatos, as meias, a calça e a camisa, ficando de cuecas, lavou o que pôde, e ali vestiu a roupa toda molhada mesmo, pelo menos não estava mais sujo de barro.
Saiu e levou o pneu para fazer a calibração. Encheu-o e parecia não haver vazamento algum. Bento perscrutou-o procurando algum ponto de vazamento e aparentemente nada encontrou, concluindo que ele deveria estar apenas murcho.
Bento encostou-se cansado ao sol, descalço, deixou os sapatos e as meias secando, não dava para calçá-los molhados. O frentista chegou perto dele e puxou conversa.
_ O que aconteceu?
_ O pneu estava murcho, achei que estava furado.
_Tô falando do pneu não, tô falando de você.
_ Nem te conto, desci este morro aí correndo atrás deste pneu aqui e tive que buscar no rio lá embaixo, não foi fácil não.
Nisto, chegou um carro para abastecer. Dentro dele, a bela Meire com quem Bento havia dançado durante a festa de casamento da Ana Márcia, enquanto o homem que parecia ser o seu pai saiu do carro para conversar com o frentista, Bento percebeu que era o mesmo homem que falara com o grandalhão no baile, ela o viu e sorriu, ele, todo desajeitado e molhado, sentiu-se envergonhado de estar daquele jeito, sorriu para ela, fez um gesto de que iria telefonar mais tarde. Ela lhe disse, rindo:
_ Conseguiu pegar o pneu lá embaixo?
Ele confirmou envergonhado.
_ Consegui. E você? Acordada tão cedo!
_ Vou à missa com papai.
Depois, o pai da Meire viu o Bento e o olhou de forma bastante assustadora, mas se lembrou dele e lhe perguntou o que havia acontecido. Bento lhe explicou. O pai lhe disse para se cuidar, porque o Tomás era cabeça dura e podia machucá-lo, mas certamente não iria matá-lo. Depois, ele pagou a conta, entrou no carro e eles se foram. O frentista voltou-se para o Bento.
_ Sei não, acho que o pneu tá murchando!
Bento olhou para o pneu e não percebeu muita diferença, chegou perto e pisou nele percebendo que ele estava um pouco menos resistente, mas continuou em dúvida.
_ Vou esperar mais um pouco para ter certeza. Tenho que me secar ainda. Diz uma coisa, você sabe se aquela moça que estava no carro tem namorado?
_ Tem não. Mas ela é osso duro de roer, faz tempo que não namora ninguém daqui da cidade e que eu saiba,  nem de fora.
_ Mas ela é muito bonita, por que  não namora ninguém? Você sabe de alguma coisa?
_ Sei de nada, não. Só sei que o pai dela é o delegado da cidade.
_ O delegado! E eu deste jeito! Agora que ela não vai querer nada comigo mesmo!
_ E como é que o você conheceu ela?
_ Conheci ontem no casamento da Ana Márcia. A gente dançou junto na festa, conversamos e ela me deu o telefone.
_ Você  tá com sorte. 
_ Não tenho tanta certeza. Diz aí, enquanto eu espero mais um pouco, tem uma coisa que me deixou muito curioso, por que esta cidade tem duas igrejas? Uma lá no alto do morro e outra mais para baixo na mesma rua?
_ É por causa de briga política.
O frentista contou a seguinte história para o Bento:
É mais ou menos assim: “eram dois fazendeiros inimigos políticos. Um era mais velho e o outro mais moço. O mais velho foi o mais rico fazendeiro da cidade até a chegada do pai do mais moço, este falecido de forma misteriosa, alguns diziam envenenamento, outros, causas naturais. Bom, o fato é que o mais moço foi obrigado, muito cedo, a assumir a fazenda e o fez muito bem, transformando ela na mais rica da cidade e, aí, tornou-se inimigo do mais velho que, invejoso da riqueza e do poder do outro, começou a tripudiar junto à população local.
O mais velho decidiu então, construir uma igreja nova para a comunidade e investiu um bom dinheiro, construindo a igreja no alto do morro, onde se localizava a pequena capela de pau-a-pique que foi derrubada.
A nova igreja ficou muito bonita e imponente no alto do morro, os sinos badalavam e se ouvia a longa distância e a população subia até lá para as missas. O mais novo não queria ficar para trás, mas precisou de alguns anos para dar o troco ao mais velho.
E aí o padre amigo do mais velho ficou doente e faleceu. O bispo mandou um padre mais novo para a cidade e ele ficou amigo do fazendeiro mais novo.
Em um terreno grande, muitos metros abaixo de onde era a igreja nova, o fazendeiro mais novo decidiu dar uma festa no dia de Santo Antônio e chamou o padre que rezou uma missa antes de iniciar a festa.
A festa fez tanto sucesso quanto a missa rezada ali. Muita gente gostou de não ter que subir até o fim do morro para assistir a missa e o fazendeiro mais novo decidiu erguer uma igreja ali e o fez.
O padre mais novo, para ajudar o amigo, começou a rezar duas missas nos domingos de manhã: a tradicional das oito horas na igreja antiga e uma nova missa às dez horas na igreja nova.
E a nova missa fez muito sucesso porque eram muitos metros a menos de morro para subir, e ninguém queria mais assistir à missa das oito, só a das dez e o fazendeiro mais novo, desta forma, se vingou do mais velho. Apenas as pessoas que moravam perto da igreja no alto do morro iam àquela missa, as outras  iam à missa das dez, morro abaixo”. 
Terminada a história, Bento e o frentista constataram que o pneu estava mais murcho e devia mesmo haver algum furo. Bento decidiu levar o pneu ao borracheiro. Lá chegando, encontrou tudo fechado. Bateu na porta de ferro, até que uma senhora gorda atendeu.
_ O que o senhor quer?
_ Consertar o pneu, tá furado.
_ Tem que esperar o Zé chegar.
_ Ele demora?
_ Acho que não, deve estar chegando!
Bento esperou mais de meia hora, conversando com o frentista lá no posto, até que o Tadeu apareceu. Conversaram rapidamente sobre a situação do pneu e o borracheiro convidou o freguês para entrar na oficina. Lá, Bento pôde perceber todos os apetrechos necessários para consertar pneus: uma grande banheira cheia de água para localizar o furo, lixas, colas reparos e muitos pneus e câmaras estocados.
Tadeu fez os procedimentos, localizou o furo, marcou o local com um giz, retirou o pneu, fechou o buraco. Enquanto esperavam a cola secar, o filho do borracheiro desceu a escada e apareceu na oficina.
_ Filho, acordando a esta hora? Como é que foi a festa?
Meio sonolento, ele respondeu que fora tudo bem, que ele se divertiu, que a noiva estava bonita.
_ E você viu a Meire?
Ao ouvir o nome da Meire, Bento olhou meio de soslaio para o rapaz e percebeu que era aquele grandalhão que quase lhe bateu, procurou, então, manter-se sempre de costas para o rapaz. Ficou olhando as “interessantes” pilhas de pneus novos e velhos e tentando descobrir uma lógica naqueles conjuntos de pneus.
_ Ela estava lá sim e nem deu bola para mim, ficou dançando a noite toda com um cara de outra cidade.
_ Olha, filho, já te falei que você tem que esquecer esta menina. Ela não gosta mais de você.
_ É, eu sei, mas eu não consigo. Bom, vou sair pai,  antes  do almoço estou  de volta!
Depois que o rapaz foi embora e a cola havia secado, Bento pagou o borracheiro e saiu. Na porta da oficina, olhou o seu relógio, depois olhou para o morro que teria que subir para levar o pneu até o seu carro. O calor já estava forte, o desânimo maior ainda.
Foi subindo aquele morro enorme rodando o pneu com as mãos, as costas doíam naquela incômoda posição, ia com o maior cuidado para não deixar que o pneu rolasse morro abaixo de novo. Parecia que a cidade inteira acompanhava o seu infortúnio através das janelas antigas e também “sentia” a zombaria dos passantes. Chegou, enfim, ao seu carro e trocou o estepe murcho pelo pneu cheio. Depois, sentou-se no banco dianteiro do carro que, por sorte, estava estacionado embaixo de uma árvore. Cansado, com as mãos e as roupas sujas, ficou olhando para a praça, para as casas, com a sensação de que todos o observavam e zombavam dele.
Abriu os vidros do carro para ventilar, encostou-se no banco do motorista e cochilou.
Enquanto Bento cochilava, Tomás estacionara sua moto no alto do mirante de Morro Agudo e sentava-se no chão. À sua frente observava a moto diante daquele vale que se avistava. Começou a pensar em tudo o que compunha uma moto na medida em que a olhava e identificava mentalmente cada peça. Ele sabia montar e regular uma moto de olhos fechados. Fazia isto desde menino, quando começou a ajudar o pai, que  era, inicialmente, mecânico de motos, só depois que o seu pai começou com o negócio de borracharia.
Tomás olhava aquela moto e se lembrava do que a Meire lhe dissera: “Não quero nada com um trocador de peças”. Aquilo lhe doeu, mas a verdade revelou-se para ele. Agora ele compreendia uma coisa que talvez fosse correta, talvez não fosse, mas ele compreendia que ele era apenas um trocador de peças, muito bem treinado nestes anos todos, mas apenas um trocador de peças. Ela queria algo mais, ela queria alguém mais do que isso. Talvez ele precisasse ser mais do que isso. E lhe veio uma idéia, tão forte que colou na sua cabeça e lhe ficou martelando até que ele tomou uma decisão. Pegou a moto com a intenção de retornar à oficina.
O cochilo de Bento durou apenas uns quinze minutos, foi acordado por um policial que o chamava para uns esclarecimentos na delegacia. Ao entrar na sala do delegado, deparou-se com o pai da Meire. Bento agora compreendia, porque o grandalhão o respeitara.
_ Você? – disse a autoridade para o Bento. Eu me lembro de você. Você dançou com a minha filha no casamento. Eu vi vocês. E você estava lá no posto de gasolina. 
_ Com todo o respeito, doutor, nós só dançamos. Não aconteceu nada.
_ É bom mesmo!
_ Mas, doutor, o que eu fiz para ser chamado aqui?
_ Tenho duas reclamações contra você: uma velhinha que machucou a perna e um senhor que teve o carro amassado por um pneu. O senhor está sendo acusado de lesão corporal e dano ao patrimônio, vamos esclarecer esta história.
_ Escrivão.
_ Sim, doutor!
_ Anota tudo o que este homem está dizendo aí, está chegando a hora do almoço e tenho ainda que passar no mercado, quero chegar antes de fechar. Depois você libera o moço aí e amanhã eu volto para assinar o B.O.
Depois de uma hora, ao sair da delegacia, Bento depara com seus três amigos, rindo da sua desgraça.
_ Desde quando vocês estão aí?
_ A gente viu você subindo o morro com o pneu. Foi engraçado demais.
_ E nem me ajudaram?
_ E perder a sua cara de desamparado?
_ E perder a oportunidade de ver você entrando na delegacia?
Bento ficou muito zangado com eles, o sangue ferveu, e aborrecido com todos os acontecimentos, nem quis mais conversa, entrou no seu carro e manobrou para sair. Talvez por cansaço, raiva ou nervosismo, errou na manobra e atingiu o carro da frente, quebrou a lanterna traseira do outro carro, amassou um pouco o pára-choque. O barulho da pancada atraiu algumas pessoas, entre elas, Meire.
         _ Oi. – disse-lhe Bento.
         _ Oi. – ela retribuiu e se aproximou com ar preocupado, olhou o estrago no carro e disse ao Bento.
         _ Meu pai não vai gostar de ver esta lanterna quebrada!
         A pequena aglomeração de pessoas aguçou a curiosidade de Tomás que passava e ele estacionou a moto por perto. Aproximou-se e viu a lanterna do carro do delegado quebrada e Bento conversando com Meire, que o viu e foi logo reclamando:
         _ Que foi Tomás! Vai brigar com ele agora?
         Bento embranqueceu de medo, os amigos dele se aproximaram como se fossem protegê-lo do grandalhão, este olhou a situação, aproximou-se dos carros que estavam colididos. Não disse nada, apenas voltou para a sua moto, ligou-a e foi embora.
         Logo apareceu o pai da Meire e viu a situação.
         Virou-se para Bento:
         _ Você é o dono deste carro?
         _ Sim!
         _ Vou acrescentar esta colisão no boletim de ocorrência. 
         Os amigos de Bento se aproximaram e começaram a negociar com o delegado.
         _ Não faça isso! Deixa-o! Quanto é? A gente paga, vamos ver quanto custa trocar esta lanterna. Tem alguma loja de peças aqui na cidade.
         Por uns quinze minutos ficou aquela conversa, Bento pedindo desculpas, os amigos tentando convencer o delegado a não complicar mais a vida dele, a Meire também pedindo ao pai que se mostrava muito inflexível.
         Nisto retorna Tomás carregando uma lanterna e uma caixa de ferramentas abrindo passagem no meio do povo até chegar aos dois carros. O delegado o interpelou:
         _ Tomás, já lhe falei que não o quero envolvido em confusão.
         Ele nem respondeu. Simplesmente, aproximou-se do carro do Bento, procurou uma posição ideal, agachou-se, encontrou um ponto onde podia segurar o veículo, colocou as mãos no carro, ergueu-o o suficiente para soltá-lo e arrastá-lo para o lado. Depois se ergueu, abriu o capô do carro do delegado, soltou os parafusos e as conexões elétricas da lanterna e a trocou usando as ferramentas que trouxera.
         O delegado achou que o Tomás apenas queria agradá-lo.
         _ Quanto você gastou nesta lanterna aí, Tomás, vou te dar o dinheiro.
         Tomás respondeu ao delegado:
         _ Não é nada não, doutor.
E depois se virou para Bento.
E já me disseram que você esteve na borracharia do meu pai para consertar o pneu. E já me disseram que o seu estepe está furado também, passa lá na borracharia depois que eu mesmo conserto para você.
         Depois, Tomás se virou para Meire.
         _ Esta é última vez que você me viu trocando uma peça nesta cidade. E tem mais, não ficarei mais atrás de você. E quero que um dia você me perdoe por ter atormentado tanto a sua vida. Tchau.
         Ele foi andando, colocou as coisas na moto e foi embora.
         Bento, após muitas idas e vindas à cidade, casou-se com Meire numa bela festa patrocinada pelo pai da moça, mas não viveram felizes para sempre.
Após mudarem-se para São José dos Campos e morar num belo apartamento no Jardim Aquarius, Bento percebeu que a moça era pouco afeita ao trabalho e muito afeita a mandar em tudo, tornando a sua vida um pouco complicada. Tiveram um casal de filhos e muitos tormentos.
Doze anos se passaram desde que Tomás deixou Morro Agudo. Quando retornou, estava formado engenheiro mecânico, depois de ter viajado à Alemanha e aos Estados Unidos atrás de especialização. Passou um mês de férias antes de sua viagem para a China onde ficaria três anos ajudando a fazer uma linha de produção de motocicletas.