A foto de Chapeuzinho Vermelho caiu do fundo da gaveta da escrivaninha quando ele foi pegar uma duplicata vencida de um dos fornecedores de sua fábrica de mingau. Lobo Mau suspirou com muita nostalgia ao lembrar-se daqueles tempos antigos em que era tão fácil raptar crianças e levá-las para a produção de sua fábrica. Um tempo em que ninguém pedia nota fiscal, não existia vigilância sanitária e nem contador cobrando e alertando que a fiscalização estava em cima, e quase não havia impostos. Hoje, altíssimos e impagáveis.
Aquela foto de Chapeuzinho Vermelho ainda criança levou-o de volta às lembranças da bela floresta onde ele morava, tão cheia de árvores e tão longe da civilização, onde raríssimas crianças se perdiam e ele as devorava, somente depois de ter certeza de que elas nunca mais encontrariam o caminho de volta e estavam à beira da morte pela fome, sede ou doença. Naquele tempo em que ele era apenas um selvagem a mais na floresta. Depois, vieram os caçadores, vieram os homens que destruíram tudo, arrancaram as árvores mais antigas e nobres, colocaram fogo na mata, e ele se viu obrigado a encontrar-se com a civilização. Adaptou-se, aprendeu a língua dos homens, conheceu as cidades e montou a sua primeira fábrica de mingau no campo, próximo a um resto de floresta onde ele conheceu aquela doce menina que mudou a sua vida, foi uma paixão intensa que o levou à desgraça.
Mas isso foi há muito tempo atrás.
Agora, o Lobo Mau andava cansado de tanto trabalho, já beirava os cinqüenta anos e ainda não havia se firmado na vida. Além de não comer mais criancinhas, depois de ter levado alguns anos de cadeia, acusado de aliciamento de menores e de pedofilia, lutava muito para manter a sua fábrica de mingau funcionando. Estava difícil conseguir trabalhadores mesmo com a abundante oferta de mão de obra infantil no Brasil, a disputa por ela era muito maior. Crianças eram aliciadas pelos traficantes de drogas, enquanto outras eram obrigadas a ajudar os pais em carvoarias, olarias, canaviais e plantações de sisal, meninas muito pequenas se prostituíam, crianças drogavam-se nos centros das grandes cidades, pouco sobrava para o velho Lobo Mau. Contratar adultos não dava, pois pagar os salários que o sindicato exigia para a categoria o levaria a falência.
Além do problema com a escassez de mão de obra, ele ainda enfrentava a invasão de mingau importado da China com preços subsidiados e a dificuldade de vender sem nota fiscal, pois o seu negócio, obviamente, era ilegal, sem qualquer registro e sem condições de higiene. Lobo Mau vivia sob o risco de interdição no caso de alguma denúncia para o Ministério da Saúde ou o do Trabalho.
O telefone tocou, era um cliente:
_ Aí, seu Lobo, vou precisar de nota fiscal, estou com problemas de ICMS e quero o crédito para abater no meu imposto.
_ Caramba! No momento eu estou sem nota, mandei para o contador e ele não me devolveu, depois, o talão estava no final, acho que vou ter que fazer mais nota, você pode esperar uns dias?
_ Ah, seu Lobo, não posso não, então este mês não vou comprar nada de você.
E desligou o telefone. Menos uma venda no mês. Estava difícil.
Um dia, caminhando na rua à procura de mão-de-obra infantil, o Lobo Mau avistou o seu primo, o Lobão, aquele que perseguia os três porquinhos, já havia mais de dez anos que não se viam, uivou para ele, atravessou a rua correndo e o parou:
_ Oi, como vai Lobão?
_ Oi, Lobo Mau! Há quanto tempo! Que bom encontrá-lo, vamos tomar uma cerveja ali na padaria! Precisamos pôr a conversa em dia!
Os dois foram à padaria para beber e jogar conversa fora. Sentaram-se naqueles bancos redondos e encostaram-se ao balcão. Pediram uma cerveja gelada.
_ Como estão as coisas, Lobo Mau? Tem visto a Chapeuzinho?
_ Ih, Lobão, me dei mal com ela, fiquei uns anos na prisão, você não soube?
_ Não, o que aconteceu?
_ A Vovozinha abriu uma página na internete e me denunciou por pedofilia porque eu queria comer a Chapeuzinho Vermelho, ficou feio, a polícia veio atrás, tive que cancelar o meu e-mail, vender o meu computador e me mudar de cidade. Ainda assim, a polícia me achou e encarei seis anos de prisão. A Vovozinha acabou comigo. Depois, voltei ao meu negócio de mingau e tenho me virado, sabe como é, pegar criancinhas para fazer mingau. E você com os porquinhos?
_ Eu também tive problemas com os três porquinhos. Eles contrataram uns caras barra pesada para me dar uma surra, e posso dizer que apanhei tanto, mas tanto, que fiquei em coma por seis meses, trinquei quatro vértebras, e até hoje ainda sinto uma dor na coluna, o médico disse que eu tive muita sorte, podia ter morrido ou ficado paralítico para o resto da vida.
_ É, primo, já não existe mais espaço para Lobos Maus como nós, por isso que nossa família está em extinção.
_ É verdade! É verdade!
Admitiu o Lobão, vendo que o mundo mudara muito nos últimos trinta anos.
_ Sabe o quê a gente podia fazer, primo?
_ Nem faço idéia. O quê?
_ Eu estava pensando nestes concursos de dublês infantis e agências de modelos, parece que dá dinheiro, talvez seja o caminho para a gente sair desta pobreza.
_ Bom, quer dizer, mau! Hoje em dia as pessoas andam muito preocupadas com beleza, parece que todo mundo quer ficar famoso.
_ Talvez a gente consiga sobreviver de outro jeito, você está reclamando da sua fábrica de mingau, venda-a e vamos entrar neste negócio de modelos e dublês infantis.
_ Vender a fábrica de mingau? Mas e a minha música: “Eu sou o Lobo Mau, Lobo Mau, Lobo Mau, eu pego as criancinhas para fazer mingau!”, como é que fica?
_ Esquece a sua música! Vamos explorar as criancinhas em vez de comê-las, vai dar mais dinheiro, e elas ainda vão agradecer-nos.
_ Minha fábrica não vale muito mesmo, você tem algum dinheiro também?
_ Bom, quer dizer, mau! Juntei uma grana aí fabricando uns cedês e devedês] piratas, é a maior moleza, é só botar no computador, copiar o cedê . Depois, pegar a capa, escanear e imprimir, está feito um cedê novo. De quem você quiser, por isso que eu acho que esse negócio de dublê infantil dá dinheiro, eu estou morando na periferia, eu sei o que esta meninada está querendo.
Então, o Lobo Mau vendeu a sua fábrica de mingau para um empresário de uns fornos de carvão em Goiás, que usava mão de obra infantil e há muitos anos queria aquela fábrica e depois, junto com o Lobão, montou uma agência de modelos infantis.
Eles começaram a cadastrar crianças para fazer cursos de modelo, imitação de grupos de pagode com dançarinas em trajes mínimos e trejeitos eróticos, de dançarinas populares idem que cantam músicas de duplos sentidos, e outros artistas por aí sempre nesta mesma linha do chulo, popular, erótico e quase pornográfico, que faz muito sucesso e vende fácil.
A agência funcionava da seguinte maneira: eles cadastravam as meninas interessadas em ser artistas; num estúdio, pediam que as mães as trouxessem prontas para uma apresentação, em que eles testavam as garotas nas danças da boquinha da garrafa, da bundinha, do joelhinho, da barriguinha e de todas as outras partes do corpo que pudessem ter algum apelo erótico, acrescentando alguns animais inocentes como egüinhas, galinhas, vaquinhas e tal. As melhores eram levadas para comerciais e apresentações públicas como dublês dos artistas famosos em festas populares de bairros da periferia.
E tinham também o curso de modelos. Contrataram um rapaz de sexualidade duvidosa para dar o curso para as meninas e adolescentes que quisessem ser modelos. Falavam que iriam colocá-las em comerciais e mais um monte de coisas, mas, para isso, precisariam fazer o “book” que custava os olhos da cara, claro que podia ser pago em suaves prestações com juros altíssimos. De conversa aqueles Lobos eram bons.
Aos poucos, o negócio foi crescendo, entusiasmado com o sucesso que começava a vir, o Lobo Mau comentou com o Lobão:
_ Isto é que é exploração de criancinhas! Nunca pensei que ia sentir-me tão feliz num negócio. Primeiro, é do jeito que eu gosto, totalmente sem ética, fazer com que crianças de quatro, cinco, onze anos, fiquem imitando trejeitos eróticos e gestos de relação sexual, isto é adorável! E as mães ainda pagam para cadastrá-las aqui para a gente fazer isto, e nós ainda ganhamos comissão quando elas vão cantar em algum espetáculo. Sem contar que elas ainda querem fazer o “book”. Nós estamos explorando a mesma criança de quatro jeitos diferentes! É demais, é demais! Lobão, você e a sua idéia foram a nossa salvação.
Apesar da excitação de seu primo, o Lobão sabia de alguns problemas e comentou:
_ É primo, mas tem um fiscal da prefeitura aí que está querendo encrencar com o nosso negócio!
_ O que ele quer?
_ Grana! Está inventando coisas, falando que a gente está irregular e que estamos sonegando imposto.
_ Isto é verdade. Alguma vez a gente pagou algum imposto? O que a gente vai fazer?
_ Sei não, talvez dar-lhe dinheiro, mas eu estava pensando, se ele encher muito o saco a gente podia usar aquele método que usávamos na floresta... devorá-lo!
_ Gostei. Por mim, tudo bem.
Assim, no sábado seguinte, estrearam a churrasqueira nova que Lobão mandara pôr em sua casa. Somente os dois lobos, algumas garrafas de uísque e umas belas morenas contratadas que não sabiam que carne era aquela.
Um dia, uma mãe muito bonita com uma filhinha igualmente linda, queria colocar a sua menina para fazer o teste, mas ela não tinha nem um centavo no bolso. O Lobo Mau olhou bem, chamou a mãe em separado e lhe disse que arrumaria um lugar para a menina se ela se deitasse com ele. Ela aceitou. A partir daí, um novo ingrediente no negócio dos velhos lobos entrou: a troca de favores sexuais com as mães. Assim, eles passaram a promover algumas festinhas reservadas para estas dedicadas mães que se submetiam a tudo com o fim de ver suas filhinhas brilhando na televisão. Havia até algumas que comentavam que se tivessem um lobo daquele como marido! Quanta diferença seria em casa!
_ Já estamos explorando de cinco jeitos, meu primo Lobo Mau. Agora, além de fazer as crianças dançar para nós, de cobrar taxa para se cadastrar, de cobrar comissão dos espetáculos, de cobrar o “book” caríssimo, ainda comemos as mães. Este negócio é bom demais!
_ E falando em bom demais, com a minha parte do lucro deste mês, vou comprar um carro importado!
_ É isso aí, primo! Mas tem mais uma coisa.
- O quê?
_ Você viu a Kimberly Kelly? Aquela loirinha tingida de nove anos, filha da Jenifer Lory? Não sei onde este povo arruma estes nomes estrangeiros...
_ Eu sei quem é. O que tem ela!
_ Vamos ganhar um pouco mais com ela. Ela vai cantar na televisão. Passou num concurso aí, a menininha é boa de voz, tem talento mesmo. E você tem que acompanhá-la, eu não posso porque já marquei uma reunião com um vereador aí, que quer uma grana para garantir uma verba da prefeitura para nós, para resolver aquele problema nosso com este novo fiscal que apareceu aí nos atormentando, estes caras não aprendem a lição, pena que este novo é só osso, senão eu faria outro churrasco em casa.
_ Deixa que eu vou.
Na emissora, Lobo Mau não desgrudou da sua protegida, acompanhou-a por todos os corredores, camarim, ensaio antes de entrar em cena, até que deparou com a apresentadora do programa em que a menina se apresentaria, um loira bonita, de seios siliconados, pele super bem tratada, um metro e setenta e cinco, sessenta quilos muito bem distribuídos. Ela olhou para aquele Lobo enorme de quase dois metros de altura vestido em roupas elegantes. Orelhas pontudas, olhos grandes, dentes afiados, pelo bem penteado e cheiroso. Depois olhou de novo, deixando que antigos desejos de menina aflorassem ao peito e exclamou:
_ Lobo Mau? É você? O que você faz aqui?
O lobo olhou bem para aquele rosto, mas não a reconheceu de imediato:
_ Não está me reconhecendo? Quando eu era criança, cantava uma música assim: “Pela estrada afora eu vou bem sozinha...”
_ Chapeuzinho Vermelho? É você?
_ Eu mesma!
Chapeuzinho transformara-se numa linda loira. Ela lhe contou que era a apresentadora do programa infantil em que a menina ia cantar e fazer a dança erótica da boquinha da garrafa. Em alguns minutos, contou para o lobo que a vovozinha tinha morrido, sua mãe se casara pela segunda vez, ela se tornara modelo, fez sucesso, virara atriz, não deu certo, mas se dera bem com a apresentação daquele programa, que alcançava ótimos índices de audiência e dava um bom lucro com anunciantes de brinquedos de guerra, bonecas de artistas, salgadinhos, refrigerantes e “fast-foods”.
E devia ser mesmo muito lucro porque toda hora chegava alguém de alguma empresa para trazer mais detalhes dos produtos que seriam anunciados no programa. Entre os desenhos, havia muitos comerciais de tudo quanto era porcaria para crianças (que os três porquinhos não se ofendam).
O Lobo Mau se espantou com toda aquela história. Aquela menininha franzina de vestido vermelho transformara-se em uma mulher bonita, empresária rica e gananciosa também! Como o mundo dá voltas! E, como um urso retornando do seu sono hibernal, o velho lobo teve vontade novamente de comer a Chapeuzinho Vermelho e a convidou para um jantar. Chapeuzinho só poderia dois dias depois, dando-lhe tempo para se preparar e pensar numa estratégia de levá-la para a cama.
Nada disso foi preciso, Chapeuzinho veio no seu carro blindado, com dois seguranças, buscar o Lobo Mau, quando este entrou no carro, ela lhe disse:
_ Você é o dono da agência de Modelos Lobo Bão, não é?
_ Sou, junto com o meu primo, o Lobão. Por quê?
_ Por que você não sabe o quanto eu sonhei com você durante toda a minha vida, na minha infância, na minha adolescência, eu sonhava com você e eu naquela estrada escura. No começo, eu sentia medo, depois, era desejo. Eu não tenho muito tempo hoje e sua fama na cama já se espalhou pelo mundo da moda, já me disseram que não é apenas o seu nariz que é grande, por isso, que tal se a gente fosse direto para um motel e jantasse lá?
O Lobo não teve tempo de pensar duas vezes. Jantaram no motel “Old Love History” e passaram algumas horas agradabilíssimas fazendo amor. Ela era incansável e totalmente louca, levando o velho Lobo à exaustão física completa, quase lhe causando um enfarte. Enfim, após muitos anos, diante da lareira de um quarto de motel, antes dos primeiros raios de sol daquele dia inesquecível, com uma garrafa de cachaça na mão e uma trilha de coca na mesa, Chapeuzinho Vermelho devorou o Lobo Mau com sal grosso, orégano e páprica, porque ela não gostava de cebola e nem de pimenta do reino.