Parreira parou o carrinho do supermercado na frente do banheiro feminino e aguardou sua mulher. Sábado, quase nove horas da noite, aquele mundaréu de gente correndo contra o tempo para terminar suas compras e ir para a casa descansar ou se preparar para curtir o domingo. Enquanto esperava, ele espiava o conteúdo dos carrinhos de supermercado, algumas vezes tentava até filosofar em cima destas observações. Afinal, havia homens de grandes barrigas empurrando o carrinho lotado de cerveja, carne e carvão para o churrasco do dia seguinte; famílias composta de um casal com crianças levando carrinhos lotados de refrigerantes, guloseimas, latarias e potes dos mais diversos tipos para agüentarem até o fim do mês ou até o próximo salário, dependendo do que acabasse primeiro; e, quando era uma mulher que empurrava, não faltava dentro do carrinho um potinho de creme para as mãos ou para a pele. E gente, muita gente para lá e para cá, ainda mais neste sábado, logo depois do dia de pagamento. As compras das famílias eram um bom indicador de sua classe social e de seus hábitos.
Passaram-se mais de quarenta minutos e nada de sua esposa, a Márcia, sair à porta do banheiro para que eles fossem embora. Aquela mulher nunca demorara tanto assim, será que tinha acontecido alguma coisa? Ele desconfiava que ela tivesse passado mal e desmaiado, mas se algo houvesse acontecido, alguém sairia de lá e avisaria, chamaria um médico e ele saberia. Aguardou mais um pouco, bateu dez horas e as portas da entrada do supermercado foram abaixadas, só se podia sair. Parreira estava muito ressabiado com aquela situação, queria entrar no banheiro feminino e buscar a sua mulher, mas resolveu fazer as coisas do jeito civilizado, interpelou uma das funcionárias do estabelecimento, que por ali passava, e lhe pediu que verificasse se a mulher dele estava lá dentro. A moça entrou no banheiro e retornou alguns segundos depois, dizendo-lhe que não havia ninguém lá dentro.
_ Mas não é possível, minha mulher entrou aí no banheiro já faz mais de uma hora! Ela está aí, eu não a vi sair!
_ Desculpe, senhor, não há mais ninguém lá dentro, se quiser, pode entrar e verificar.
Ela abriu a porta do banheiro, ele entrou e confirmou que estava vazio.
_ Alguém tem que fazer alguma coisa, como vou ficar sem a minha mulher?
_ Faz o seguinte, converse ali com o gerente do atendimento, ele pode ajudar.
_ Pois é isto mesmo que eu vou fazer!
E foi pisando duro, empurrando o seu carrinho com raiva, insatisfeito com o desleixo do pessoal do supermercado, que permitiu que sua mulher “sumisse”, que Parreira procurou o atendimento ao cliente:
_ Você é o gerente do atendimento?
_ Não, o gerente vai demorar um pouco para voltar.
_ Eu quero fazer uma reclamação!
_ Pois não, pode ser comigo mesmo.
De trás do balcão, atendeu-o um funcionário cansado, que certamente estava ali desde as duas horas da tarde, e pegou uma ficha de um bloco para atendê-lo.
“Nem computador eles têm” – pensou Parreira.
_ A minha mulher sumiu. – foi falando sem conseguir controlar a ansiedade.
_ Sumiu!! Então não é aqui, é na delegacia que o senhor tem que ir.
_ Mas ela sumiu aqui dentro, eu quero fazer a reclamação aqui!
_ Está certo, está certo! A que horas foi isso?
_ Há pouco mais de uma hora atrás!
_ Deixa-me anotar aqui, então. - o rapaz parecia procurar um campo no formulário, até que se deu conta de que não havia - Espera aí, mulher desaparecida não é este formulário, vou pegar o outro formulário. O senhor, por favor, aguarde só mais um pouquinho.
Ele procurou um outro papel na parte de baixo do balcão que era bastante abarrotada de todos os tipos de papéis.
_ Achei. É este aqui. Vamos lá! Em que local ela sumiu?
_ No banheiro feminino, aquele que fica perto da saída.
O rapaz seguia a ficha e continuava a perguntar:
_ Qual é o tipo de sua mulher?
_ Como assim?
_ Tem as alternativas aqui é... loura, morena, negra, mulata, ruiva, índia, mestiça, outra definição... A sua mulher é o quê?
_ Não sei, ela tem pele branca, mas não muito branca, tem cabelo castanho escuro, assim meio liso.
_ Tá, tá, entendi. Senhor, sua mulher estava fora do prazo de validade?
_ Não! Ela é nova! Tem trinta e dois anos!
_ Estava com a embalagem avariada?
_ Quê isso! Ela sempre anda bem vestida!
_ Estava estragada?
_ Não! Claro que não! Ela está em plena forma e é muito saudável!
_ Estava com odor estranho?
_ Quê? De forma alguma, ela toma banhos de uma hora e ainda por cima gasta um dinheirão com perfume!
_ Estava estufada?
_ Que é isso? Já falei, ela é magra, em plena forma!
_ Você percebeu alguma aparência esverdeada, alguma coisa que pudesse sugerir a presença de fungos e bactérias?
_ Você está louco? Quero saber da minha mulher e você me vem com estas perguntas? – Parreira estava nervoso com a demora no atendimento e com a quantidade de perguntas idiotas, queria uma solução rápida.
_ Calma, senhor, calma! São as perguntas que estão aqui. A idade o senhor já falou... Se a gente a encontrar, qual o endereço de entrega?
_ Anota aí o endereço da minha casa. – E Parreira passou-lhe o endereço.
_ Telefone? Celular?
_ Anota aí.
_ Senhor, já fiz todas as anotações aqui, falta uma, espera aí, qual o nome dela?
_ Márcia Parreira.
_ Obrigado. O senhor tem alguma sugestão a fazer para a nossa loja?
_ Sugestão? Como assim.
_ Sei lá, limpeza, preço, atendimento. Tem alguma observação?
_ Não. Só quero a minha mulher de volta, quero que vocês me ajudem a encontrá-la. E a levem de volta para minha casa.
O rapaz estendeu a ficha preenchida para o Parreira:
_ Por favor, assine no x.
Ele assinou e reclamou:
_ Tá! E a minha mulher?
E o funcionário, com uma expressão de quem decorou as palavras lhe disse:
_ A sua reclamação está anotada. Dentro de uma semana o senhor vai receber em casa uma resposta do nosso departamento de atendimento ao cliente. Obrigado. Estamos empenhados em oferecer o melhor serviço com a qualidade ISO 20.000. Boa Noite!
Restou a Parreira colocar a compra do supermercado no carro e ir embora sem a sua mulher. O quê fazer? Depois de dez anos casados, ela some assim, sem mais nem menos? E ele ainda teria que aguardar uma semana para saber o que aconteceu com ela, e se o pessoal daquele supermercado não a encontrasse, ele já estava jurando que iria procurar o PROCON e nunca mais faria compras lá, não faria mesmo! Bando de incompetentes! – Foi dizendo Parreira de si para consigo mesmo, enquanto arrumava as compras no porta-malas do carro.
Parreira chegou em casa e colocou a compra em cima da mesa da cozinha, abriu uma lata de cerveja retirada da geladeira e foi assistir televisão, ficou até tarde, quando foi para o quarto e deitou-se na cama para dormir. No domingo de manhã, chegou à cozinha e viu a compra no mesmo lugar que a deixara, então se lembrou de que a Márcia não estava em casa para guardar as coisas. Viu que teria que fazer isso. Primeiro pegou o leite na geladeira para esquentar, pois estava com fome e tinha que tomar o desejum, mas não encontrava a caneca leiteira para levar ao fogo.
_ Onde esta mulher guarda esta caneca? –perguntou para si mesmo.
Olhou no gabinete embaixo da pia e procurou pelos armários até que a encontrou. Esquentou o leite e tomou com café do dia anterior mesmo.
Depois, pôs-se a arrumar as compras. As coisas congeladas, como o hambúrguer, já estavam moles e frias, mesmo assim ele as colocou no congelador, e as coisas geladas na geladeira, até aí estava tudo fácil, depois, pegou uma lata de leite condensado do saco de compras.
_ Onde é que se guarda isso?
Ele abriu todas as portas dos armários tentando achar uma relação de coisas que tivessem a ver com o leite condensado. Não encontrou nada. Deixou o leite condensado de lado. Pegou a lata de molho de tomate e também não conseguiu imaginar onde a guardaria.
_ Quer saber, vou deixar tudo aqui em cima da pia mesmo, que é muito mais fácil. – Parreira, sem perceber, já estava se acostumando a falar sozinho.
E assim fez. Esqueceu este assunto, pegou o seu jornal e foi lê-lo no banheiro, enquanto fazia suas necessidades. Conseguiu ler o jornal inteiro sem ninguém bater na sua porta pedindo para usar o banheiro. Saiu, largou o jornal desarrumado no cesto de revistas do banheiro e deixou a tampa da privada levantada. Trocou de roupa e foi almoçar no mesmo restaurante em que ia todos os domingos com sua mulher. Almoçou, voltou para casa, ligou a televisão num programa de domingo, deitou-se no sofá, cochilou, acordou com o próprio ronco na hora do futebol, assistiu o jogo bebendo cerveja e comendo salgadinho de pacote. Viu os programas de domingo na TV e depois dormiu no horário costumeiro.
No dia seguinte no trabalho, comentou com os seus colegas o fato. Os colegas ficaram indignados e solidários com ele, concordaram que o supermercado falhara em deixar sua mulher sumir, alguns disseram que havia o lado bom porque ele não teria ninguém reclamando na sua orelha por deixar a tampa da privada levantada ou por largar o prato em cima da mesa depois do almoço. Outros lembraram do lado ruim, que era a casa ficar bagunçada e a dificuldade que seria achar as suas meias limpas na gaveta certa, uma vez que ele nem sabia onde se localizava a gaveta. Cueca não era problema, ficaria com a mesma a semana inteira e se não achasse outra no guarda-roupa era só comprar mais algumas.
O fato é que uma semana se passou e Parreira já tinha até se acostumado a ficar sem a mulher, a casa andava mais bagunçada do que nunca, a caneca de leite ficou em cima do fogão no mesmo lugar a semana inteira, e, por preguiça ou por não saber lavá-la, ele começou a tomar leite frio no café da manhã. Como eles não tinham filhos, ele conseguia saber onde estava cada coisa. Na sexta-feira à noite, Parreira saiu com os amigos para beber cerveja. Ao voltar, tirou a roupa suja e jogou-a em cima da cama, adormecendo em cima daquele amontoado de roupas (acumulado com as roupas dos outros dias da semana), cobrindo-se com o cobertor de qualquer jeito. Não tendo mais ninguém com quem brigar, ele estava calmo e curtia o seu futebol sossegadamente no sábado à tarde, quando bateu na sua porta um funcionário do supermercado.
_ Senhor Parreira?
_ Sim.
_ O senhor reclamou que sua mulher havia sumido no banheiro feminino do nosso supermercado?
_ Sim, fui eu mesmo, vocês a encontraram?
_ Sim e não, senhor.
_ Como assim?
_ Um empresário encontrou a sua mulher perdida no estacionamento e foi devolver na seção de achados e perdidos no dia seguinte, mas na hora que ele preenchia a ficha de devolução, mudou de idéia e a levou para casa.
_ Mas, espera aí, aquela mulher é minha!
_ Pois é. Nós argumentamos isto, mas ele nos propôs oferecer-lhe uma troca, ele empresta a mulher dele para o senhor enquanto ele estiver usando a sua.
_ Mas isso eu não quero. A minha mulher é insubstituível! Eu vou lá falar com esse cara! – e saiu bravo e pisando duro como sempre fazia quando o contrariavam.
Parreira chegou à casa do tal empresário, um homem que devia ser o mordomo o atendeu, ele explicou a situação e soube que o empresário se chamava Jorge. Quando o mordomo os colocou de frente à frente, ele foi logo exigindo:
_ Cadê a minha mulher?
Jorge olhou com um ar tranqüilo e ordenou:
_ Emílio, por favor, traga a esposa deste senhor!
_ Com todo o prazer, meu senhor. – o mordomo saiu e logo depois retornou acompanhado da Márcia.
Parreira a olhou, ela estava irreconhecível. Exasperou-se e levantou a voz para Jorge:
_ O quê você fez com a minha mulher?
_ Apenas dei uma melhorada.
_ Melhorada? Ela está totalmente diferente, é outra mulher.
_ Isto é verdade, quer ver tudo o que eu fiz com ela?
_ Claro que quero.
_ Márcia, por favor, tira a blusa.
Márcia obedeceu. Jorge apontou os seios dela.
_ Veja só estes seios novos de silicone, dá uma apalpada para você ver como ficaram perfeitos.
Parreira apertou-os.
_ Ficaram muito bons mesmo!
_ E tem mais, tira o resto da roupa, por favor.
Márcia obedeceu. Jorge pediu-lhe que ela se virasse de costas.
_ Veja só o que eu fiz com a bunda da sua mulher, fala a verdade, é a mesma bunda? Está muito melhor, tirei as estrias, fiz uma lipoaspiração aqui, outra aqui e outra aqui. E olha esta barriguinha depois de uma lipoescultura, está perfeita.
Parreira estava deslumbrado, sua mulher tinha sido remodelada, estava perfeita.
_ E esta cor? Por que ela está com esta cor? – perguntou Parreira.
_ Banhos de luz ultravioleta, no corpo inteiro, não fica nem a marca do biquíni.
_ Perfeito! – exclamou Parreira.
_ E o senhor prestou atenção no rosto? Nem uma ruguinha, rejuvenesceu uns quinze anos com os cremes que aplicamos.
_ É mesmo, Jorge, ela está perfeita. – já totalmente calmo, Parreira era até cordial com o homem.
_ E os cabelos? Levei-a até o Maximu’s, o melhor cabeleireiro da cidade, gostou desta nova cor? Deste corte?
_ Ficou muito bom!
_ Sem contar o banho de loja que o senhor não lhe dava há muito tempo, seu Parreira. Isto é coisa que se faça com uma mulher! Tem que dar banho de loja de vez em quando! Isto sem contar os banhos mesmo! Com pétalas de rosas, ofurôs com óleos especiais e outras coisinhas mais!
Jorge dirigiu-se à mulher:
_ Muito obrigado, Márcia, pode vestir-se agora.
Márcia vestiu-se e o Parreira segurou-lhe a mão, e já ia levando-a para casa, junto com as sacolas de roupas.
_ Muito obrigado, Jorge, além de ter encontrado a minha mulher, ainda deu este trato nela, não sei como agradecer.
_ Eu sei. Está aqui a conta.
_ Quê?
Parreira pegou o papel, trezentos mil reais de despesas com a Márcia.
_ Você gastou tudo isto com ela! – esbravejou.
_ No estado em que você a deixou, - Jorge não o chamava mais de senhor - deveria gastar muito mais. Você a largou no olho da rua, perdida, toda estropiada, eu a encontrei e cuidei dela, agora você tem que pagar, e olha que eu não pus aí o par de brincos, vai de brinde.
_ Não vou pagar e pronto!
Parreira puxou a sua mulher pelo braço e tentou sair, mas os seguranças do Jorge o impediram. O empresário lhe disse:
_ Eu posso liberá-los, mas tenho duas exigências!
_ O quê?
_ Primeiro, você vai assinar a promissória...
_ E a segunda?
_ Está vendo aquele quartinho lá?
Aproximaram-se do cômodo. No centro, uma grande cama de casal, por todo o quarto, algemas, chicotes, pregos, roupas de couro e muitos artigos sadomasoquistas.
_ O quê é isto?
Jorge não lhe respondeu, apenas deu uma ordem para os guarda-costas.
_ Levem-no. Tirem a sua roupa, amarrem-no na cama, que eu já venho!
Os brutamontes o agarraram. Ele resistiu, tentou livrar-se e não conseguiu.
_ Ei, o quê você vai fazer comigo?
_ Nada, meu bem, alguém já te disse que você é muito gostoso?