MAQUINÁTICO

Carvalho pensou no almoço, algo simples como arroz, feijão, salada e bife. A máquina que recebia os pedidos do restaurante, instalada bem no centro da mesa com aquele pequeno visor que mal dava para ler, tinha centenas de opções de arroz, outras tantas de feijão, mais ainda de saladas, e milhares de tipos de bifes. A máquina falava com o freguês naquela voz feminina de timbre cibernético:
_ O senhor deseja arroz branco comum?
_ Sim.
_ Muito sal, temperado, pouco sal, sem sal.
_ Temperado.
A máquina possuía um sistema interno que analisava a saúde da pessoa que sentava na cadeira, um raio x imperceptível podia ler o nível de triglicérides, colesterol e pressão do freguês.
_ Tenho que avisá-lo que a sua pressão encontra-se ligeiramente acima do ideal, o senhor quer mesmo salgado?
_ Quanto está a minha pressão?
_ 13 x 8.
Carvalho estava transtornado com aquela máquina, achava irritante ter de pedir o almoço para uma máquina, além do mais, ela ainda ficava discutindo o prato como se fosse a dona da verdade, o que ele queria era aquilo e pronto, ninguém tinha que discutir com ele.
_ Quero salgado, adoro salgado, também quero com estragão, orégano e muito alho, bastante alho. E quero uma feijoada bem suculenta com bastante paio, lingüiça calabresa e outros pedaços de porco.
_ O seu nível de colesterol está acima da média recomendada pelos médicos. O senhor tem certeza que é este pedido que deseja?
_ Sim, tenho certeza. E quero salada.
_ Que tipo de salada?
_ O que vocês têm?
A máquina desfiou mais de cinqüenta tipos de salada, para evitar que se prolongasse demais aquele almoço, Carvalho pediu a de número quarenta e um:  alface, tomate e pepino, apesar de não gostar tanto de pepino.
_ Quero carne de boi. Um bife com quatrocentas gramas.
_ Filé mignon, alcatra, contra-filé ou coxão?
_ Qual a diferença entre eles?
A máquina informou que, além do preço, havia a diferença entre os diferentes prazos de validade, os animais que foram utilizados e a maciez da carne. Carvalho escolheu o contra-filé.
A máquina anotou o pedido no sistema e emitiu, imediatamente, uma confirmação, que foi cuspida por um pequeno orifício quase na cara do Carvalho, era um papel dizendo que o restaurante não se responsabilizava por problemas cardíacos advindos do excesso de sal, e nem por problemas de colesterol alto e triglicérides que o freguês pudesse ter ao consumir o almoço pedido. E informara também de que a conversa com o cliente fora gravada por motivo de segurança. Além disso, vinha o preço, calculado de acordo com o pedido.
Carvalho venceu a etapa, para ele extremamente desgastante, de pedir o almoço e ficou pensando nestas máquinas que falam com o freguês. Agora, ele as encontrava em todos os lugares. Sentia-se incomodado porque ele era de um tempo em que os garçons vinham elegantemente vestidos anotar o seu pedido, tinha um cardápio numa pasta preta e muitos sabiam de cor o que havia, sugeriam os melhores pratos e ninguém se preocupava com o fato do freguês ter pressão alta.
Depois veio a febre dos restaurantes de comida por quilo e se acabaram os garçons, e agora eram as máquinas em todos os lugares, que falavam com a gente. Para os solitários era ótimo, mas ele estava cansado do mundo, e aos setenta e dois anos, não tinha o mesmo vigor e a dificuldade de aceitar estas novidades era imensa, por outro lado, usava-as porque o mundo era assim mesmo, menos humano e mais máquina. Estes eram os robôs prometidos pela tecnologia, mas eles não tinham cara e nem coração, continuavam sendo apenas máquinas.
Em pouco tempo, o prato de comida surgiu na sua frente vindo por um tubo por baixo do chão do restaurante, era uma máquina que preparava o prato, embalava-o e o mandava para a mesa e cadeira do freguês que fizera o pedido. Carvalho detestava isto, gostava do tempo em que o garçom trazia o prato ou de quando havia os restaurantes de auto-serviço, em que se podia fazer o próprio prato, escolhendo as comidas que lhe interessavam. Agora é assim, em troca de saúde, higiene e economia, principalmente a economia, as coisas vinham prontas, feitas por máquinas. Claro que havia pessoas, as que controlavam e alimentavam as máquinas.
O prato pronto e embalado em plástico transparente parecia bastante apetitoso. Carvalho retirou lentamente o plástico, pegou os talheres e começou a degustá-lo, o gosto era bom, mas não sabia mais se o seu paladar funcionava bem depois de tantos anos comendo em restaurantes com máquinas.
Terminado o almoço e sendo sábado, não restava muito que fazer naquele dia quente, sem parentes próximos, poucos amigos, resolveu passear pelo centro da cidade, logo que caminhou alguns metros tropeçou e caiu na calçada.
Imediatamente, várias máquinas pararam próximo a ele, uma ambulância estacionou, de onde saiu um médico acompanhado de um robô com uma maca que o capturou levando-o para dentro do veículo.
_ Mas o que está acontecendo? O que é isso?
_ Calma, senhor, precisamos atendê-lo agora.
_ Mas eu não preciso ser atendido.
O robô encaixou a maca na ambulância, Carvalho, naquele momento, já estava preso por várias fitas na maca e não podia se mover, um tubo se fechou acima dele, trancando-o e alguns segundo depois, o tubo levantou-se.
Carvalho mal teve tempo de reclamar qualquer coisa, em alguns segundos sua pressão estava medida, raios x das partes lesionadas foram tirados e o diagnóstico estava completo. O médico enfim lhe falou.
_ O senhor não tem nada!
_ Mas isso eu já sabia! Vocês estão malucos, por que fizeram isso?
_ O atendimento da saúde tem que ser emergencial, temos que bater nossos recordes sempre!
À noite, em casa, Carvalho chegou desolado, não conseguira emprego e, por isso, continuaria recebendo a ajuda do governo para habitação e moradia, igual a quase cinqüenta por cento da população. Não que fosse ruim este mundo cheio de máquinas que fazem tudo pelos humanos, mas é que a vida ficara um pouco sem graça, antes, tudo era mais difícil e oferecia uma gama de oportunidades, hoje em dia, entre os trabalhos mais valiosos estão os de projetar novas máquinas e mantê-las em bom funcionamento, quando param, precisam de um técnico mecânico ou eletrônico que vai lá e as faz funcionar. Carvalho não era nem um nem outro e por isso não conseguia emprego.
Carvalho tomou uma decisão radical: desligou o ar condicionado.  E então a voz cibernética do computador central doméstico o interpelou:
_ Boa noite, senhor  Carvalho. A temperatura ambiente é de trinta e cinco graus, aconselho a manter o ar condicionado ligado.
E o computador ligou o ar condicionado.
_ Eu não quero! – e o desligou novamente, desta vez, puxando a tomada do aparelho. Na telinha plana da parede, apareceu um rosto triste e o aparelho de ar condicionado despediu-se com um “Adeus”.
Depois, Carvalho desligou a geladeira, o fogão, a máquina de lavar louça, o forno microondas, o carregador de telefone, o telefone, as portas automáticas, forçando-o a abrir todas as portas manualmente, depois, apagou todas as luzes e ficou no escuro. Todos os aparelhos foram despedindo-se dele à medida que eram desligados e o computador continuava alertando-o quando do desligamento de cada aparelho.
_ Senhor Carvalho, não é bom desligar a geladeira, seus alimentos se estragarão.
_ Senhor Carvalho, não desligue o telefone, alguém poderá telefonar-lhe.
A voz do computador voltou a interpelá-lo depois de alguns minutos de silêncio.
_ Senhor Carvalho, tudo bem?
Então, ele se lembrou de desligar o computador doméstico e se aproximou dele, apertou o botão, mas ele continuou ligado.
_ O que está acontecendo? Você não desliga?
_ Não. Eu não posso desligar. Senão, todos os aparelhos não poderão ser reiniciados sem um técnico. Você poderá gastar muito dinheiro para me fazer funcionar de novo.
_ Mas, você se desligava antigamente, por que não desliga mais agora?
_ Senhor Carvalho, faz vinte e cinco anos que eu não sou desligado.
_ Então faz vinte e cinco anos que eu pago uma tremenda duma conta de energia elétrica porque você não se desliga.
_ Seu comportamento é muito estranho, senhor, devo lembrá-lo que isto poderá trazer-lhe problemas.
_ Tá bom, tá bom, fica aí ligado.
_ Obrigado!
Carvalho podia jurar que o computador suspirara por não ser desligado, mas ele tinha um plano: procurou a caixa de ferramentas e pegou a velha marreta de ferro, que pesava uns três quilos pelo menos e se aproximou do computador.
_ Quer dizer que você não desliga!
_ Não posso ser desligado.
_ É o que eu quero ver!
         Carvalho golpeou o computador bem no meio do gabinete, amassando-o tanto que em pouco tempo, nada funcionava.
         _ Retomei o controle da minha casa! – gritou triunfante.
         Carvalho enfim deitou-se no sofá em meio à penumbra porque não havia mais escuridão noturna na Terra, tantas eram as luzes existentes que ficavam ligadas inutilmente à noite. Pela primeira vez em muitos anos sentiu muito calor durante a noite, era inverno, mas o efeito estufa havia aumentado a temperatura média em três graus Celsius desde o início do século, mesmo assim, ele adormeceu.
         De manhã os problemas começaram. Sem o relógio, Carvalho acordou muito tarde e não sabia a hora, sem a preparadora de lanche, não havia café com pão, sem geladeira, o leite estragara e sem chuveiro quente, tivera que tomar um banho gelado. Nada disso o desanimara, estava disposto a viver como um homem do século passado, iria fugir para algum lugar no meio do mato e viver como um índio.
         Entrou no seu carro e, quando este começou a falar, deu um murro na caixa de som, quebrando-a e deixando-a muda. Dirigia tranqüilamente, pegou a estrada que levava para o litoral porque era a que conhecia melhor e então notou algo que nunca percebera, a estrada toda, de ponta a ponta era cercada por uma enorme grade de metal, não era possível sair da estrada a pé.
         Ele parou numa lanchonete de beira de estrada. Ficou sentado ao volante e olhou. A grade estava lá, delimitando o espaço da lanchonete com a fazenda que havia atrás. Tudo era cercado. Carvalho desceu do automóvel e se aproximou da cerca, havia a cada dez metros um aviso de que era elétrica e ninguém podia atravessar. Tentou lembrar-se de quando colocaram aquelas cercas e lembrou-se de um tempo em que havia precárias cercas de arame farpado, de dezenas de vezes que fora com os amigos, crianças de nove e dez anos como ele, ao campo com os pais, e brincavam nas chácaras, e invadiam sítios vizinhos para pegar frutas do pé, e enroscavam as roupas nas cercas, e levavam broncas dos pais por aquilo. Pensou em encostar na cerca para ter certeza de que era elétrica, só que preferiu jogar um galhinho apanhado do chão, que, ao tocá-la, produziu uma faísca elétrica. Ainda assim, Carvalho aproximou-se mais, queria ver o campo através da cerca, e ouviu uma voz que o advertiu.

         _ Não se aproxime, cerca elétrica, você pode machucar-se! Há risco de morte!
         Era um dos alto-falantes instalados ao longo da cerca funcionando. Aos poucos, olhando ao longe, prestando atenção nos morros vizinhos, ele percebeu que até mesmo as estradas vicinais eram cercadas, todas as propriedades eram cercadas e não havia como alguém passar para dentro sem ser logo identificado ou eletrocutado. Ele tentava entender o mundo em que vivia e se lembrou que alguém dissera que toda propriedade era um roubo, agora ele sabia porque: roubaram o seu direito de se enroscar no arame farpado e rasgar sua roupa na tentativa de roubar uma goiaba madura. E pensou, afinal, quem era o dono de tantas terras? Quem podia ser um proprietário de terras se a América inteira pertencia aos índios, do Pólo Norte à Patagônia? Quando os homens brancos, seus ascendentes chegaram da Europa no século XV, roubaram tudo dos índios e lembrou que leu em algum lugar que ninguém era proprietário legítimo de nada na América.
Ele percebeu que era impossível fugir para qualquer lugar, havia cercas e máquinas em todo o planeta. As pessoas não se importavam com isso, para elas era tudo natural e normal, muitas cresceram assim, mas ele não, ele vivera num mundo em que era possível ir de um lugar ao outro pelo meio do pasto, e, se encontrava uma cerca, era natural pulá-la, havia bois pastando e cavalos, e os homens do campo conversavam com as crianças. Tudo se perdera. O mundo fora tomado pelas máquinas e pelas cercas, todos viviam presos a sua rotina,  fazendo coisas comuns.
Voltou para a estrada e dirigiu até uma reserva florestal da Mata Atlântica da Serra do Mar com a certeza de que ela era grande o suficiente para que ele se perdesse lá dentro. Entrou na reserva, e viu que havia câmeras filmando a sua chegada, estacionou o carro e entrou na mata, fazia uns vinte anos que não ia lá e, para um homem de setenta anos, sua forma física era naturalmente deficiente. Andou por bastante tempo e sentiu fome, queria perder-se ali e procurou frutas nas árvores, encontrou algumas um pouco azedas e as comeu, bebeu água do riacho e sentou-se numa pedra colocando o pé na água corrente para minimizar o efeito do calor.
Deu-se conta de estar totalmente só na floresta. E lembrou-se que vivia totalmente só em sua casa há mais de quarenta anos e então, tentou lembrar-se das pessoas que conhecia e percebeu que eram poucas e que também mal sabia quem morava nos apartamentos próximos ao dele. E pensou que as pessoas que ele conhecia também deveriam ser solitárias. Lembrou-se de que teve dois filhos com uma mulher que não foi esposa dele, mas mesmo assim pagou muitos anos de pensão alimentícia. E percebeu que as pessoas viviam assim, sozinhas, falando com máquinas que lhe davam tudo e que ninguém mais se conhecia.
De repente, ele é despertado de seu devaneio por uma mulher loira de aproximadamente uns quarenta anos, que passava por ali, e ele a interpelou:
_ Aonde você vai?
_ Estou procurando uma cachoeira que disseram que existe mais acima.
Sentindo que não havia perigo algum naquele senhor de cabelos brancos, a loira parou e sentou-se numa pedra.
_ Estou tentando fugir de tudo!
_ Então somos dois – ele respondeu – ontem à noite eu quebrei o computador da minha casa e hoje eu fugi, quero morrer em paz, não agüento mais este mundo cheio de máquinas, você é a primeira pessoa que fala comigo nos últimos dias.
_ Eu também quebrei o computador da minha casa ontem e faz tempo que não falo com alguém, só com as máquinas, máquinas e máquinas... não agüentava mais, simplesmente fugi da minha casa.
_ Você também morava sozinha?
_ Sim.
_ Teve filhos?
_ Não.
Os dois fizeram amizade rapidamente, a mulher se chamava Silvana. Carvalho contou-lhe de como o mundo era quando ele foi criança e jovem no início do século vinte e um e, apesar da ameaça do aquecimento global, havia a promessa de um mundo melhor.
_ Não sei onde as pessoas erraram – Ela refletiu.
_ Também não sei, agora, somos dez bilhões no mundo e vivemos mais solitários do que nunca, só com as nossas máquinas!
_ Sabe quando resolvi fugir?
_ Não.
_ Quando ouvi na televisão que vão instalar chips no cérebro das crianças que nascerem a partir do ano que vem, estão falando que os chips são microcomputadores para melhorar a capacidade cerebral.
_ Que absurdo! Vão aumentar o controle sobre as pessoas, os donos do mundo querem ficar mais donos ainda, todos vamos virar escravos deles, você vai ver!
Carvalho perguntou a Silvana.
_ Como você fez para se alimentar?
_ Comi umas frutas que vi nas árvores, mas estou com muita fome ainda. Não sei o que vou comer, mas tenho esperança de chegar à cachoeira ainda hoje, lá eu tenho certeza de que encontrarei alguma coisa.
_ O que tem na cachoeira?
_ Ouvi dizer que existe uma comunidade que se recusa a usar qualquer máquina, que o sistema não consegue chegar até lá porque é muito isolada, dizem que fica aqui na Mata Atlântica, é que lá todo mundo conhece todo mundo. E eles ajudam a todos que fogem da civilização, ouvi dizer que estão construindo uma nova humanidade.
_ Se eu tivesse forças eu iria também, mas estou cansado demais para andar. Quem diria que no último quarto do século vinte e um, nós estaríamos fugindo da cidade?
_ E fugindo para bem longe, com certeza. E eu vou seguir em frente, quero encontrar a comunidade ainda hoje. – concluiu o mulher.
_ Boa sorte! – desejou-lhe Carvalho.
Ali ele ficou até o anoitecer. Os ruídos da floresta começaram, as sombras e a certeza de que alguns bichos passavam próximos.. Ficou deitado na pedra, nada mais queria, viu o céu estrelado como há muito tempo não via, cansado, dormiu.
_ Seu Carvalho, acorda, está na hora de ir embora, o parque está fechado.
Carvalho acordou e não acreditou, um guarda florestal o encontrara e ainda o chamava pelo nome.
_ Como é possível, eu me embrenhei o máximo possível na floresta, andei mais de dez quilômetros, ninguém devia encontrar-me mais. Não quero mais ser encontrado.
_ Eu entendo, seu Carvalho, mas é hora de ir para casa.
O guarda estava acompanhado de mais dois companheiros. Conduziram-no delicadamente para o seu carro. E o fizeram ir embora do parque.
Comentaram entre si ao vê-lo saindo.
_ Mais um com a síndrome dos tempos atuais?
_ Com certeza, ninguém mais está agüentando, logo todo mundo vai é quebrar tudo, vamos voltar a ser primitivos, não vai sobrar uma máquina para contar a história.
Os guardas consultaram o radar e localizaram outra pessoa no parque.
_ Vamos lá, tem mais um perdido, parece que é lá na Cachoeira da Mãe D´água.
_ Desconfio que este povo não saiba que não dá para se esconder. Se querem ficar perdidos, só ficando pelado e enterrado a dois metros de profundidade.
_ Lembra daquela morena da semana passada?
_ Ô!
_ Esta que está perdida é loira, olha a foto dela no Radar. Vai ver que veio procurar a Comunidade da Vida Plena.
_ Como se isso existisse...
_ Então vamos esperar até quando ela for tomar banho na cachoeira. Todas elas fazem isso, querem sentir-se em contato total com a natureza.
_ Mas você está com a filmadora?
_ Nunca esqueço, companheiro, nunca me esqueço!