HOSPITAL URGENTE

          Mendonça abriu os olhos e viu que estava deitado num lugar diferente, com teto claro e uma iluminação agradável. Quis virar-se para a direita e o corpo doeu todo. Virou o pescoço com dificuldade para olhar o quarto, havia um criado mudo branco com um paninho verde, uma janela com cortinas brancas e tubos presos a suportes metálicos ligados ao seu braço, além de vários fios presos a ele ligando-o a aparelhos que mediam alguma coisa. Reconheceu que estava em um quarto de hospital, mas não se lembrava como fora parar lá.

Lembrava-se apenas do jogo do Corinthians no dia anterior, que o deixou triste porque o timão perdeu para o Palmeiras com um gol de pênalti inexistente apitado por um juiz ladrão no último minuto do segundo tempo. Saíra furioso do estádio com a derrota. E não tinha sido pênalti! O juiz era ladrão! – dizia ele.
Um tempo depois, uma enfermeira entrou no quarto e, ao vê-lo acordado, chamou o médico de plantão.
_ Senhor Mendonça! Que bom que acordou! Sou o Doutor Portela! – disse-lhe o médico, todo cortês, ao chegar.
_ Doutor! O que eu estou fazendo aqui? O que aconteceu comigo? – Mendonça queria saber o que acontecera para que ele fosse parar no hospital.
_ O senhor não se lembra?
_ A única coisa que me lembro é que saí furioso do jogo do timão que perdeu para o Palmeiras ontem!
O médico pensou um pouco sobre como dizer tudo para o paciente, muitas coisas aconteceram no período em que ele esteve internado, a situação era delicada.
_ Vamos por partes, Mendonça, porque partes são as coisas que você mais tem atualmente. Primeiro, o jogo ao que você se refere é aquele em que o Corinthians perdeu de um a zero, de pênalti, no último minuto? O primeiro clássico do Campeonato Paulista deste ano?
_ É este mesmo!
_ Pois é. O campeonato já acabou.
_ Acabou? Quem foi o campeão?
_ O Santos! Depois de mais de vinte anos, apareceu um moleque lá que arrasou, estão falando que é o novo Pelé.
_ Há quanto tempo eu estou aqui, doutor?
_ Faz cinco meses que você está aqui em estado de coma. Pensamos que nunca mais você fosse voltar.
_ O que aconteceu comigo, doutor? Por que estou aqui?
_ Acidente de trânsito. O ônibus em que você estava foi cercado por um grupo de palmeirenses, o motorista levou um tiro, perdeu o controle e caiu de cima do viaduto dentro do Rio Pinheiros, morreu um monte de gente. Você é o último deste grupo aqui no hospital.
Mendonça estarreceu. Tentava lembrar-se, forçava a memória e nada. Não conseguia acreditar.
_ E minha família, doutor? Meus pais, meus irmãos.
_ Estão todos bem, vamos avisá-los que você retornou do coma e logo eles virão visitá-lo.
O Mendonça quis levantar-se e o médico lhe disse que seria impossível naquele momento, pois ele precisaria de algumas sessões de fisioterapia para recuperar todos os movimentos. As sessões começaram no dia seguinte, com um enfermeiro de tipo suspeito que mais parecia um capanga de chefe do jogo do bicho do que outra coisa. Não falava nada, mas exercitava os músculos dos braços, pernas e tórax do Mendonça. Uma semana depois ele já estava em melhores condições e pediu para levantar-se da cama, o enfermeiro o ajudou dizendo-lhe para ir devagar e com calma, porque talvez ele não conseguisse, pois estava deitado há cinco meses, e ele precisaria de mais tempo para desenferrujar os músculos. Mendonça insistiu e, com muita dificuldade e ajuda do enfermeiro, conseguiu sentar-se na cama, pediu um chinelo e viu que não tinha o segundo dedo do pé esquerdo quando foi calçá-lo, pensou logo que o tivesse perdido por causa do acidente. Depois ficou em pé, sentiu tonturas por alguns instantes, apoiou-se na parede e no enfermeiro, sentindo dores por todo o corpo, conseguiu, enfim, sair do lugar e caminhar apoiado até o banheiro, queria ver-se no espelho. Assustou-se com a imagem refletida.
Fizeram-lhe implante de cabelo, tinha uma cicatriz que dava a volta em toda a circunferência da cabeça, a orelha esquerda estava costurada, havia outra enorme cicatriz no queixo e estranhou enxergar em seu rosto um olho verde, fechou os olhos, firmou o olhar no espelho e lá estava aquele olho verde. Quando pôs a mão no rosto, percebeu que o seu dedão era diferente. Falou com o médico que chegava naquele instante.
_ Doutor, o que é isto? Eu tenho um olho verde e um dedo diferente!
O médico mostrou-se solícito e disse, rindo.
_ Ah, isso não é nada não! É que você perdeu um olho no acidente e nós fizemos um transplante de córnea de um dos corintianos que morreram. O dedo? Você perdeu o dedão da mão e colocamos no lugar o dedo do pé esquerdo, nada demais, operações de rotina!
_ Mas tinha que ser um olho verde, doutor? Eu sou corintiano, não podia ser um olho preto, não?!
_ Pelo menos você enxerga com os dois olhos!
Mendonça soltou um risinho amarelo e, ao rir, percebeu que lhe faltava um dos dentes, olhou toda a dentição e viu que muitos dentes estavam obturados, que não estavam antes do acidente.
_ E os meus dentes estão obturados?
_ Pois é, eles andaram se estragando, cinco meses sem escová-los, sabe como é, não foi fácil tratá-los.
_ E esta cicatriz? Dá a volta na minha cabeça!
_ Nada de mais. Foi o corte profundo que você sofreu quando o ônibus caiu no rio. Seu escalpo estava saindo, tanto que seu cabelo ficou mais ralo, você já percebeu isso também, não é?
_ Sim, percebi.
Mendonça ficou assustado porque o médico falava com muita naturalidade como se tudo fosse tão normal! Voltou para a cama. O médico e o enfermeiro saíram.
Ficou pensando naquilo que lhe acontecera. Trocaram-lhe um olho, mudaram um dedo de lugar. Possuía muitas cicatrizes no rosto. O cabelo parecia transplantado. O que mais teriam feito? Mendonça aproveitou que estava sozinho e se levantou novamente, ainda com muita dificuldade, caminhou lentamente pelo quarto. Olhou a gaveta do criado-mudo e encontrou uns papéis que pareciam ser o seu prontuário médico, lá estavam anotados todos os procedimentos que foram feitos com ele. Lendo-o, soube que haviam tirado uma safena da perna esquerda e a colocaram ligada ao coração de plástico que batia, pois o seu coração natural parara de funcionar na segunda semana de internação. Retiraram um pedaço de intestino que infeccionara, trocaram um dos rins, a tíbia da perna direita era uma prótese de titânio porque o osso original fora esmigalhado no acidente. Transplantes de medula e de pulmão completavam o seu quadro.
Mendonça não sabia mais quem ele era de verdade. Talvez tivessem trocado o cérebro dele também, as memórias que ele possuía poderiam pertencer a outra pessoa. Não, se fosse assim, ele não teria lembrado do jogo. Talvez ele fosse realmente o João Carlos Mendonça que pensava ser, mas o corpo não era, colocaram o seu cérebro em outro corpo, com certeza, feito o monstro do doutor Frankenstein. O corpo dele era uma colcha de retalhos feita de pedaços de outras pessoas já falecidas, que continuavam vivas naquele corpo e que não possuíam a mesma memória. Era isto! Aquele corpo era um estranho para o seu cérebro! A cicatriz na cabeça era a prova disso!
Ele foi até o espelho novamente e não conseguia reconhecer-se. Estava magro, fraco, raquítico. Justo ele que sempre fizera musculação, era forte como um touro, gabava-se dos seus músculos. Estava agora acabado e irreconhecível, o seu belo corpo havia sido trocado por outro. – concluía.
Começou a pensar nas coisas que viveu com o outro corpo, que era perfeito, atlético. Jogava futebol no time do bairro e fora campeão três vezes na Liga Municipal. Lembrou-se dos prazeres trazidos pela Renata, aquilo que era mulher! – Riu de si para consigo pensando nela. Lembrou-se de algo e olhou por dentro da calça, examinou e concluiu que ainda tinha pênis, não o haviam trocado, só não sabia se ele ainda funcionava, mas não parecia ser o mesmo.  Pelo menos o cérebro continuava lembrando-se de tudo! Veio uma idéia, ele precisava de uma foto antiga, somente assim, comparando-se, ele teria certeza de que não fora trocado, que ele ainda era o velho e bom Mendonça.
A tatuagem!
Abriu a camisa e olhou para o peito, uma tatuagem do Corinthians estava ali, então, não trocaram o seu corpo. Alguma coisa errada havia nela que ele não conseguia identificar, mas não ficou preocupado por muito tempo com isso, contentando-se em ter a tatuagem.
Quando recebeu as visitas dos pais e ficou apreensivo ao vê-los entrando no quarto, e ficou esperando a reação deles. Se o reconhecessem, sua teoria iria por água abaixo.
_ João Carlos, meu filho! Que bom, você está vivo! Saiu do coma, que bom!
A mãe se debruçava e chorava sobre ele, dissipando suas dúvidas, afinal, mãe nunca se engana. O pai, após abraçá-lo e agradecer aos céus por ter seu filho de volta, chamou o doutor num canto como se tentasse falar alguma coisa confidencial. O acidentado ouvia as novidades que a mãe lhe contava, mas prestava atenção, mesmo, naquelas poucas palavras que o pai disse ao médico.
_ Ele está muito diferente! Será que vai perceber alguma coisa?
_ Que nada! Durante a internação é assim mesmo!
_ Quando ele voltar para a casa, tudo desincha, cicatriza e fica perfeito, mais uns três meses e só! Vai ficar perfeito!
Depois, como se percebessem que João Carlos os ouvia, os dois começaram a falar bem baixo e ele não conseguia mais entender. Quando todos saíram, ele ficou a pensar: o que estaria diferente? Será que haviam trocado mesmo o seu corpo? E se o trocaram por um de um perigoso bandido? Quando ele saísse na rua, seria perseguido por um exército de nefastos malfeitores, prontos para matá-lo? Talvez o outro que lhe roubara o seu corpo perfeito, estivesse vivendo tranqüilamente numa ilha do Caribe, tomando água de coco gelada e cercado de belas mulheres de biquíni!
Para piorar a sua desconfiança, leu no prontuário que um dos médicos era cirurgião plástico, um dos melhores do país. Por que um cirurgião de renome iria cuidar dele? Talvez o SUS não cobrisse tais custos, aliás, quem pagava por tudo aquilo? Era um quarto particular num hospital privado, seus pais não tinham dinheiro para tanto. Alguma coisa estava errada. Trocaram o seu corpo e fizeram alguns ajustes no rosto para que ele não desconfiasse.
Enfim, depois de alguns dias, João Carlos saiu do hospital e, passados uns três meses, ele desinchou, já estava andando muito bem e começava a ter uma vida normal, apesar do olho verde que o incomodava, fazendo-o pensar em por uma lente de contato castanha para disfarçar. Logo retornaria ao antigo emprego, pois o médico disse que lhe daria alta do auxílio doença em pouco tempo.
Mas ele continuava pensando que aquele corpo não era o dele, imaginava um complô envolvendo milhões de dólares lavados pelo tráfico de drogas para trocar a identidade pacata dele por uma outra, não entendia o interesse de quem poderia fazer um negócio desses, mas sentia que estava correndo risco de morte. Um grande traficante que precisava de outro corpo e outro rosto, era isso! Só podia ser isso. Aquele corpo parecia-se com o dele, mas alguma coisa não estava certa, muitas dúvidas havia em seu cérebro apesar de que ele ainda desconfiava de que nem mesmo o cérebro lhe pertencia. O pior é que duas coisas o encafifavam. A primeira: era mais fácil matá-lo duma vez do que trocar o seu corpo; a segunda: aquela verruga, que ele possuía num lugar muito secreto e que só ele e a Renata conheciam, estava no lugar que deveria estar, nem um milímetro a mais ou a menos, e isto derrubava a sua tese de troca de corpos.
A desconfiança do João assentou-se num canto dos seus pensamentos e ficou lá aguardando notícias que a pusessem em evidência. Ele retomou a vida normal de filho solteiro na casa dos pais, voltou ao trabalho, voltou à academia de musculação.
No dia do seu aniversário, finalmente, a Renata veio visitá-lo. Até então, eles haviam conversado pelo telefone apenas, ela lhe disse que gostava muito dele, mas que não dava mais para voltar ao namoro e queria continuar apenas como amiga. O João já desconfiava que ela tivesse arrumado outro namorado e a suspeita se confirmou quando ela surgiu na sala com cabelos tingidos de loiro, acompanhada de um rapaz chamado Marcelo, negro, alto, advogado, ela o cumprimentou e o abraçou e lhe disse:
_ Como você está diferente, João, parece outra pessoa!
Mendonça percebeu quando o Marcelo olhou feio para a Renata e lhe deu um cutucão no braço reprovando suas palavras. Isto foi o suficiente para que ele voltasse a desconfiar daquela história do hospital. Para ser um pouco sarcástico e testar a Renata, ele a instigou:
_ Para você ter certeza de que sou eu mesmo, tem uma coisa em mim, que só você conhece, lembra qual é?
O namorado dela olhou intrigado e curioso querendo saber a resposta, ela deu um sorriso amarelo.
_ Aquela verruga?
_ É – ele respondeu – e continua no mesmo lugar, quer ver? Posso mostrá-la agora.
_ Não, não precisa.
Depois daquele dia, João nunca mais viu a Renata, mas a sua desconfiança retornou com mais força. Observava as pessoas nas ruas tentando encontrar algum suspeito. Em todo lugar, percebia que as pessoas o olhavam de maneira estranha.
No trabalho, os seus colegas o tratavam cordialmente, mas pareciam muito atentos em todos os seus movimentos. Às vezes, via que eles formavam rodinhas na hora do café, que logo se dissipavam quando ele se aproximava. Sentia nos olhares de todos certa cumplicidade, pareciam saber de alguma coisa que ele não sabia, além de que o chefe marcava reuniões de trabalho com a equipe e não o chamava, havia algo de errado.
E sempre que voltava do trabalho para casa passou a desconfiar de um homem que tomava o mesmo ônibus que ele. O homem chegava sempre alguns segundos depois dele, era só o João Carlos pôr o pé no ponto que o homem aparecia, tomavam o mesmo ônibus e o homem descia no mesmo ponto, seguindo-o até a sua casa.
Pensando em desmascará-lo, João Carlos tomou um ônibus diferente que também passava perto da sua casa e o homem foi atrás. João acelerou o passo e se escondeu atrás de um arbusto e, quando o homem passou, ele o agarrou e o colocou contra a parede.
_ Você está me seguindo, por quê? A mando de quem?
O homem, assustado, disse-lhe que não o seguia e apenas ia para a sua casa, que era ali perto.
_ Por acaso é o mesmo caminho!
_ Então me mostre onde é a sua casa! – ordenou.
João Carlos acompanhou o homem até algumas ruas depois da dele, o homem parou defronte a uma casa, tirou a chave do bolso e abriu o cadeado, ao ouvir o ranger do portão, uma criança saiu de dentro da casa:
_ Pai!
Depois veio uma mulher e João acreditou no homem, desculpou-se e foi embora, ressabiado e confuso.
Foi quando se lembrou da idéia de comparar uma foto antiga sua com o seu rosto atual, procurou os seus álbuns de fotos e não encontrou nenhum deles. Pediu socorro para a mulher da casa.
_ Mãe, você viu os meus álbuns de fotos? Não estou encontrando nenhum.
_ Eles estão aí, filho, na estante!
_ Mas aqui só tem dois álbuns recentes de depois que eu voltei do hospital, eu quero ver aqueles antigos.
A mãe ficou em silêncio.
_ Mãe! Você viu?
Ela chegou à sala entristecida.
_ Filho, tenho uma coisa para te contar.
_ Fala mãe.
_ Roubaram nossos álbuns de fotos quando fomos assaltados, você estava no hospital em coma, esquecemos de lhe dizer depois que voltou.
_ Mas roubaram fotos? Que ladrão quer roubar fotos?
_ Não sei, foram roubadas.
_ Então não há fotos minhas de antes do acidente?
_ Nenhuma.
Este fato deu um nó na cabeça do coitado do João. Como ele poderia provar alguma coisa se não havia maneira de comparar o antes e o depois?  Havia uma armação em cima dele e era preciso descobrir.
Certo domingo, passeando de bicicleta pelo bairro e passando  em frente à casa daquele homem que o seguia no ônibus e viu que acontecia uma grande festa com som alto e churrasco. Quando um de seus colegas de trabalho passou de carro e estacionou em frente, João Carlos parou e ficou de longe olhando. Resolveu aproximar-se e ficou do outro lado da rua. Observando bem, reconheceu uma mulher que trabalhava de caixa no mercado do bairro, o jornaleiro que trabalhava perto do escritório, o barbeiro que lhe cortava os cabelos. Tantas pessoas que ele conhecia de tão diferentes lugares e todas festejando. Não era provável que se conhecessem. E por que [u2] tantos carros novos, caros, caríssimos, alguns até importados, bem em frente àquela casa!
João Carlos decidiu invadir aquela casa e descobrir tudo, queria saber o que acontecia, qual o motivo da festa, que armação era aquela. Desceu da bicicleta e entrou na casa subitamente, sem pensar em mais nada. Precisava descobrir tudo.
Ao entrar, todos pararam o que faziam e olharam surpresos para ele. Alguém desligou o som. João Carlos caminhou entre os convidados calados. Renata e o namorado estavam lá, além dos amigos com quem marcara de ir ao estádio naquele domingo, surpreendeu-se quando viu o seu irmão, também calado e olhando assustado para ele. Todos o olhavam com ar de surpresa, culpa e arrependimento.
De repente, seu chefe saiu da cozinha e disse:
_ Feliz Aniversário João Carlos!
E todos começaram a cantar o “Parabéns para você”.
João Carlos ficou encabulado e sem saber o que fazer, parecia que ele tinha dado um furo enorme. Realmente ele estava errado, todos estavam lá para lhe dar uma festa! Então era isso!
_ Mas meu aniversário foi no mês passado!
_ Nós sabemos, João, é que não tivemos tempo de lhe preparar uma festa adequada!
E comemoraram muito até o João conversar com todo mundo, fazer brincadeiras, contar piadas, beber muita cerveja e ficar com uma moça bonita. Pelo meio da festa até os seus pais compareceram para a comemoração.
Depois de uma hora e meia que ele estava lá dentro da casa na comemoração, levantou-se e saiu para tomar um ar mais fresco no jardim e viu os carros na rua. Agora eram carros comuns, não havia mais nenhum daqueles carros caríssimos e importados, estranhou porque não se lembrava de ter visto aqueles carros usados e nacionais.
A festa acabou, os amigos se foram, a madrugada chegava, a rua estava deserta. E agora João? A rotina se instalou e tudo voltou a ficar esquecido.
Alguns meses depois daquela festa todas as suas desconfianças se dissiparam, mas num dia de Abril, João foi à praia em Ubatuba, depois de muito tempo, porque agora, segundo os médicos, ele já podia tomar sol com bastante protetor solar sem ficar seqüelas na pele depois das operações que sofrera.
Sol quente, mar aberto, mulheres bonitas, mulheres feias, jogo de futebol. João saiu para caminhar à beira mar, depois de alguns minutos decidiu entrar num bar para tomar uma cerveja gelada.
E lá no bar, sentados à mesa estavam Cadu, Zoinho e Icão; três amigos de muita farra que há uns dez anos haviam tomado rumos diferentes do João Carlos. Este chegou muito contente àquela mesa:
_ Fala aí, Cadu! E aí Icão, oi Zoinho!
João estava realmente muito feliz por ter reencontrado três amigos tão antigos, amigos do peito mesmo que se separaram dele pelos caminhos do destino.
Os três olharam para ele, entreolharam-se e não o reconheceram.
_ Nossa, Cadu, você está mais careca! E cadê aquele bigodão, Zoinho!
Eles o olhavam quietos e sem reação, vendo-os neste estado, João se preocupou.
_ Vocês não estão me reconhecendo?
Aí, aquele a quem João chamara de Icão, resolveu falar:
_ Olha, amigo, eu sou o Icão, ele é o Zoinho e este aqui é o Cadu, sim, mas quem é você? Nunca te vi antes, a gente se conhece de onde?
_ Que isso, das milhares de farras que a gente fez! Vocês não estão se lembrando de mim? Eu sou o João Carlos, o Joca lá do São Pedro, o Joca corintiano!
_ O Joca? Você está falando sério?
_ Estou, sou eu, lembra da viagem que a gente fez para Ilha da Trindade, tinha aquele monte de fumac inha lá na ilha, lembra daquela menina maluca que fazia “topless”, a Janaína?
_ Mas claro que eu me lembro desta viagem, fomos nós três aqui e o Joca. Só que você não é o Joca.
_ Claro que sou eu!
_ Olha, cara, senta aí.
O Zoinho fez um sinal para o garçom e lhe pediu mais um copo e outra cerveja, este trouxe e os colocou na mesa, o copo à frente do João Carlos.
Foi o Icão que continuou falando.
_ Então você deve ser o fantasma do Joca.
_ Que é  isso!
_ Olha, cara, o que a gente sabe é que o Joca morreu no ano retrasado, nós fomos ao enterro dele. Vocês estão lembrados?
Os outros dois assentiram com a cabeça, e Zoinho disse:
_ O Joca morreu num acidente de trânsito depois do jogo Corinthians e Palmeiras, o Corinthians perdeu de um a zero, gol de pênalti no último minuto, roubado por sinal. Juiz ladrão.
_ O ônibus caiu no rio Pinheiros... – completou o Cadu.
_ Eu me lembro deste jogo, o ônibus caiu no rio Pinheiros, mas eu sobrevivi, fui hospitalizado, fiquei muitos meses em coma e me recuperei, estou aqui.
_ Espera aí! Vou lá no carro buscar uma coisa. – Icão se levantou e saiu, retornou alguns minutos depois com um álbum de fotografias velho, destes pequenos com fotos em tamanho dez por quinze centímetros. Abriu-o, buscou algumas fotos.
_ Olha, cara, este aqui é o Joca que a gente conhece e que morreu no começo do ano retrasado. Não vem brincando com a gente não. Esta foto é de quando a gente foi uma vez para a Bahia, estivemos em Salvador.
João Carlos olhou a foto e se reconheceu ali. Ele sabia ser o Joca, ele estava ali no meio deles, lembrava-se perfeitamente daquela viagem para Salvador com os três amigos e eles lhe diziam que ele havia morrido há mais de um ano atrás, não era possível.
_ Você não se parece nada com ele, olha a foto, tem um espelho ali naquela parede, olha lá.
João se levantou e foi se ver no espelho e se comparar com a foto, os amigos o acompanharam e ele constatou que era totalmente diferente. O cara da foto era um, ele era outro.
_ Se é você mesmo, quem é que foi enterrado? A gente foi no seu enterro, cara.
_ Não pode ser, aliás, só pode ser tudo verdade, eu sabia, é tudo verdade!
_ É verdade o quê, cara?
_ Eu sabia que tinha algo errado. Valeu aí, obrigado, muito obrigado mesmo, vocês são os únicos amigos de verdade que eu tenho. Muito obrigado mesmo!
E João saiu correndo transtornado com a certeza de que ele era aquele da foto e não este que estava naquele corpo estranho. Precisava tirar isso a limpo pessoalmente com os seus pais, o que estava acontecendo, afinal? Nada se encaixava, porque todos faziam esta cena? Porque fingiam que tudo estava bem? O que significava tudo isso?
Subiu a serra muito rápido quase sofrendo acidente com o seu carro. Chegou a casa e encontrou tudo vazio, não havia mais ninguém lá. A louça estava suja dentro da pia, a televisão estava ligada, a porta destrancada e seus pais e irmão não estavam, parecia que haviam saído há pouco tempo para algum lugar, e com muita pressa. Correu até a casa onde ocorrera aquela festa de aniversário para ele, chegou e tocou a campainha, ninguém o atendeu. Percebeu que o portão estava destrancado e encontrou a mesma cena que encontrara na casa do pai, da mesma forma, parecia que as pessoas que moravam ali haviam saído às pressas. Lembrou-se que seus amigos iam ver o jogo de futebol do Corinthians no Pacaembu, talvez ele conseguisse encontrá-los lá. Ele havia desistido de ir ao Estádio desde aquela tragédia ocorrida com ele.
Ainda havia ingressos para aquele Corinthians e Palmeiras, o campeonato andava fraco naquele ano e a torcida estava um pouco afastada dos estádios.
João entrou com o jogo já no intervalo, andou feito louco entre as pessoas procurando seus amigos nos pontos mais costumeiros,  foi até a  central  de rádio, anunciou que ele estava procurando pelos amigos, que aguardava ao lado da central de rádio.
Não tendo mais o que fazer, além de esperar, João acompanhou o final do jogo dali, que correu bem demais com o Corinthians ganhando de quatro a zero do Palmeiras. Um pouco antes do final do jogo, seus amigos apareceram.
_ Oi, João, estamos aqui!
_ E aí cara tudo bem!
_ Tudo bem nada seus filhos da mãe! Todo mundo está me enganando! Eu sei que este corpo não é meu, encontrei três caras na praia e eles me disseram que eu não sou o João Carlos, mostraram-me até uma foto antiga e eu vi, este corpo não sou eu, eu não estou entendendo mais nada.
_ Cara, você não está muito bem, vamos lá para sua casa, vamos conversar, tomar uma água.
_ Nossa, você está mal mesmo.
Os amigos do João o acompanharam enquanto saíam do estádio, foi na saída pela Praça Charles Miller que começou uma grande confusão. A torcida do Palmeiras veio para cima dos corintianos e, de repente, João Carlos e seus amigos viram-se no meio do tumulto, então, ele se lembrou e gritou para o amigo dele que estava ao lado:
_ Minha tatuagem do Corinthians! Falta a estrela de campeão mundial de clubes, onde ela está? – E gritava sem perceber que atraía ainda mais a ira dos palmeirenses.
Ele começou a apanhar de todos os lados, não havia para onde fugir, ouvia tiros e estouros de bombas de gás lacrimogêneo e ele continuava apanhando, quando conseguiu olhar para cima, viu nas pessoas que lhe batiam, o rosto de todos aqueles que estavam na festa, a ex-namorada, os amigos que o encontraram no estádio, o padeiro, o chefe, os colegas de escritório, viu os seus pais, os seus vizinhos e todos batiam nele e ele apanhava e apanhava e apanhava, feito Judas em sábado de aleluia. Não havia palmeirense algum lhe batendo, eram todos aqueles que ele conhecia e que ele vira no último ano e meio. Quando a polícia conseguiu acabar com o tumulto, jazia um homem que não soubera exatamente o que lhe ocorrera.
No dia seguinte sairia nos jornais a notícia da sua morte. O único torcedor a morrer no maior confronto de torcidas que ocorrera em São Paulo nos últimos anos.
Logo depois da morte do João, o namorado da Renata ligou para alguém nas Ilhas Cayman:
_ Chefe, o serviço foi feito!
Do outro lado da linha, sentado de frente para o mar em uma mansão, um rico empresário do ramo de negócios obscuros e ilegais sorvia um gole de suco de limão bem gelado à beira da piscina cercado de belas mulheres semi-nuas, numa casa que mais parecia uma fortaleza.
_ Muito bom! Pague a todos conforme combinamos, não quero ninguém pobre que possa vir a me denunciar, e diga a todos que quem abrir a boca morre. Aliás, eu gostei muito deste corpo que vocês me arrumaram, mas eu já marquei uma operação para tirar esta verruga que me incomoda toda vez que visto a cueca, e outra para tirar esta tatuagem do timão do peito... eu sou Flamenguista!